O sol está prestes a nascer em terras castelhanas.
As nuvens grossas lá do fundo, na linha mais parada da paisagem, confundem-se
com os montes que as apoiam. Não consigo ver com nitidez a face de Jim por se
encontrar ainda tudo meio na penumbra. Será isto que agora toma o nosso corpo,
esta espécie de sentimento quente que nos embrulha em vontade de calcorrear
estrada e comer pó, um contratempo genético, uma renúncia emancipada ao
conforto sedentário de ter um tecto ou a herança nómada a querer tomar-me
sorrateiramente? Não sei. Tenho, porém, algumas saudades de casa. E tenho de
imaginar a expressão de Jim, porque mal o descortino desde que subimos naquela
caravana que nos leva.
A hora do lobo
chegou ao fim. Cantam
os galos. O mundo ergue-se
de novo, agitando-se na
escuridão.
Deixámos para trás Portugal e seguimos pela
Andaluzia com os seus campos cobertos de verde. Dormimos meia-hora, se tanto.
Sabemos o tesouro que espera por nós e não o queremos perder.
Momento de Liberdade
quando o prisioneiro
pestaneja ao sol
como uma toupeira
a sair do seu buraco
os mais preguiçosos diriam que é uma dádiva
transcendente, isto do nascer do sol, o problema está em ser em horas
indecentes, desapropriadas ao burocrático descanso necessário a cada indivíduo,
sem excepções. – Eles que se fodam -
responde Jim aos meus pensamentos patéticos em voz alta. Na verdade, não há
melhor espectáculo que ver subir, lentamente, em diferentes reflexos, nas
montanhas de Espanha, aquela estrela teimosa e quente, que alumiou Cristo e
Galileu e Pessoa e que agora nos alumia a nós. É um privilégio. Jim entende-o
da mesma maneira.
Temos de tentar encontrar uma nova
resposta
em vez de
um
caminho
a poeira das estrelas está a assentar. Tudo em
tons de prata e ouro. A linha do horizonte clareia-se sem pressa. Já nos vemos
outra vez no interior da caravana enquanto o nevoeiro parece algodão
disfarçando o frio que faz. Tantos anos, tantos séculos a investir e a gastar
dinheiro e forças na construção de edifícios, na compra de camas e sofás e
máquinas e sanitas, todos anos a dizer que estamos aborrecidos – que hipocrisia
ultrajante, quando há mais metros quadrados para ver, tocar, cheirar, pisar, do
que minutos que nos falta viver.
- Porque nos chamas?
Sabes o nosso preço. É
sempre o mesmo. A tua morte
dar-te-á vida
& libertar-te-á de um destino
vil. Mas está a ficar tarde.
Seguimos em paz, em nome d’El-Rei, desbravar
montanhas húmidas, ouvir os ventos, falar-lhes, mirar as estrelas e conquistar
o que não sabemos, mas conquistar. Já não é noite, mas ainda não é manhã. O sol
de Espanha é surpreendentemente igual a outros que já vimos. Que desilusão.
Vemos lebres a saltar, também, lá ao fundo, por já começar a terra a aquecer.
Sem comentários:
Enviar um comentário