sábado, 30 de abril de 2016

fx. 1 – hello, i love you (segunda parte)


         - Em breve as nossas vozes devem ser

            uma, ou um de nós terá de partir.



Com altivez aquela mulher como que nos encostava à parede (inexistente naquela rua por onde passávamos naquele momento). – Vocês não precisam de álcool, fumos, noites em branco, sexo… precisam antes de lucidez, luz, Nomes, vida, amor.



         Estou cansado de pensar.

                            

- Quem te disse a ti o que precisamos ou não precisamos? – despachei eu apreensivo e também preocupado com a dúvida de Jim. Até àquela noite nunca antes tínhamos sequer ficado um instante que fosse a reflectir sobre como dar um sentido à vida. Que sentido? Só sabíamos que o que fazíamos, aquilo que éramos, obedecia às regras que não tinham nunca sido criadas por delas nunca sequer nos termos lembrado. A noite era o Sol da nossa vida. O sexo o alimento que nos fazia sobreviver, suportar e aguentar pelo próximo Sol e os Nomes a única droga que evitávamos sempre de forma espontânea, talvez porque sabíamos desde sempre que o Sol nunca usa a mesma trajectória exacta dois dias seguidos. Em tantos anos e tantas noites como aquela nunca nas outras tínhamos perdido segundo e meio sequer a debruçarmo-nos sobre o modo de encarar a vida. Muito menos imaginaríamos que pudesse ser aquela mulher, fruto do acaso como tantas outras que já tinham passado por nós nas mesmas circunstâncias, que nos iria alertar para essa situação. Jim e eu não temos idade. Nunca tivemos, nunca teremos. Conhecemo-nos sem nos lembrarmos sequer desde quando e ficaremos juntos até quando for. Eu sou Ele, Ele é Jim, os dois somos um e cada um de nós tem a sua atitude, o seu modo de encarar as situações, contudo quase nunca diferentes na forma de as olhar e abordar. Somos irmãos de sangue, gémeos verdadeiros filhos de pais diferentes. Ele é ruivo, eu sou moreno, Ele é alto, eu sou baixo. Ele é Jim, eu sou eu. Mas somos iguais.



         E vim ter contigo

                        à procura de paz

            E vim ter contigo

                        à procura de ouro

            E vim ter contigo

                        à procura de mentiras

            E deste-me febre

                        & sabedoria

                        & gritos

                        & dor

            & estaremos aqui

                        no dia seguinte

                        no dia seguinte

                        &

                        Amanhã



sei bem o que nos esperava. O mesmo de todos os dias. Ou de todas as noites, digamos assim. Só aquela mulher não tinha entendido. Mas como poderia? Não nos conhece de lado nenhum. Não sabe quem é Jim. Nunca me viu antes. Quem pensa ela que é? Para onde nos quer levar? Continuo apreensivo naquele momento, mas curiosamente Jim não e isso ainda me deixa pior. Até ali eu era aquele que mais rapidamente se deixava arrastar. Jim sempre fora o mais firme. Sempre fora Ele que guiara e não o contrário. Quanto muito deixava-me pegar no volante quando se sentia dominado por alguma das fraquezas naturais que apoquentam o ser humano depois de muitos excessos e longas horas desafiando a ordem natural das coisas. Não mais que isso. Daí aquele estranho momento que se confunde com o sentimento. Tudo o que eu digo está certo. Tudo o que eu penso é adequado. É como se Ele pela primeira vez não estivesse ali verdadeiramente presente. E Jim não é tipo para adormecer primeiro que eu. Poderia estar enfeitiçado? Talvez aquela mulher lhe tivesse rogado alguma praga ou lhe tenha dado alguma coisa para ingerir que eu não reparei. Ou, quem sabe, Jim esteja simplesmente a fraquejar. Nem dei conta do quanto andei até ao momento em que ela me desperta dos meus pensamentos – é aqui que vivo. – Olhei em volta e vi que Jim ainda estava extasiado com o que observava. – Esta é a rua do amor.

                                                                             (continua)


sexta-feira, 29 de abril de 2016

fx. 1 – hello, i love you (primeira parte)


E passam gays, lésbicas e outros que não são nem uma coisa nem outra. E passam seres solitários. Pernas que se cruzam com as nossas, algumas desnudas que com a menor dificuldade captam a atenção do Jim e a minha. Duas, pertenças de uma musa em particular, e Jim fica excitado,



            És ela

            Pareces ela

            Como poderias ser quando

            Nunca ninguém pôde



mas ela não nos liga. Nem tão pouco faz caso algum. E prossegue altiva e distante descendo a rua no sentido contrário ao nosso. Jim obriga-me a dar meia-volta para seguirmos atrás. Ela sente-se desconfortável mas nem mesmo assim acelera o compassado passo. O andar que nos parece conferir ser pertença de alguém dona de uma forte personalidade. Quase esboçamos uma intenção de corrida de modo a chegarmos perto. Acertamos o ritmo quando nos encontramos a dois metros de distância. Deitados, Jim e eu, conseguiríamos tocá-la. Um de nós veria mesmo por debaixo da saia curta que vai roçando aquele par de pernas e que nos embriaga naquela hora. Em uníssono e plenos de desejo gritámos: - Olá, eu amo-te! - mas ela não nos liga. A bem da verdade actua como se nada estivesse por ali a acontecer. Insistimos. Outra vez ao mesmo tempo: - Não nos vais dizer o teu nome? - e nada. Segue o seu caminho, equilibrando-se experientemente no alto dos seus longos e finos sapatos de salto alto enquanto desce a rua. Cruza-se com uns e com outros que vai cegando à medida que o seu olhar com os deles se atravessa. E nós atrás vamos rindo nas suas doentias caras, gozando-os e até atiçando-os, perguntando a cada um que por ela passa se acha que teria alguma vez capacidade para foder aquela rainha com olhos de anjo(?) - Olá, eu amo-te! - insistimos. - Não nos vais dizer o teu nome? - ela na dela. - Deixa-nos entrar no teu jogo - acrescentámos daquela vez. Mas ela segue de nariz no ar. Nem uma, nem duas. Não quer saber de nada. Ou, pelo menos, finge bem que não quer. Jim e eu bem sabemos que estamos à beira de um colapso. Foi paixão à primeira vista. Logo agora que íamos a caminho da praia para esperar pelo sol da manhã seguinte. Já não estou tão desolado naquele instante mas ainda continuo cheio de sede… de sexo, e, pelo que vejo, Jim também. E estamos despertos. O sol vai esperar. As estrelas também. E o mar. Por ora seguimos aquela de que não sabemos sequer o nome. Adoramo-la como se fosse uma daquelas estátuas que preenchem as igrejas. É assim que ela se nos afigura. Os seus braços são pecaminosos e as suas pernas são longas. E estão descobertas. A saia é demasiado curta. E está calor. A noite faz transpirar. Aquela noite faz, sobretudo quando ela se move descendo aquela rua enquanto é seguida por Jim e por mim. Os nossos cérebros gritam alto uma qualquer canção antiga.



         Flores de sentimentos levam de volta aos

            perdedores recuando em todas as direcções

            dormindo estas horas de loucura

            Nunca mais vou acordar bem

            disposto.                   Enjoa-me o cheiro

            destas botas.            Histórias de animais

            nos bosques              nada estúpidos                    mas

            como os índios mostrando-se                   os

            olhos pequenos na noite                conheço

            a floresta & a malévola maré da lua

            «Temos um ar divertido não é rapaz?»

            Mais-que-perfeito.              Esquecido.    As canções

            são bons estímulos para o riso.



E nada. Ela nada. Até as pedras da calçada parecem cumprimentá-la no momento em que os seus elegantes sapatos de salto alto tocam a sua empoeirada cor. Vergam-se à sua passagem como cachorros pedinchando doces ao seu dono. Jim provoca-me ao perguntar se eu serei capaz de a fazer reparar em mim. - Como esperas poder alcançar uma raridade destas que não parece dar tréguas a ninguém - pergunta-me. Eu esboço-lhe apenas um murmúrio e enchendo-me de coragem desato em passo acelerado para só parar na frente daquela mulher. - Olá, olá, olá. - Sou surpreendido e Jim também. Ela cedeu, parou e, primeiro, sorriu, depois não aguentando mais o esforço que já vinha fazendo desde que encetámos aquela perseguição, riu e riu e riu mais ainda. Parecia que não queria deixar de rir. Jim, que a princípio até terá achado alguma graça a toda aquela situação, fechou o rosto. A reacção tida por aquela mulher, depois de criada tão elevada expectativa, era para ele considerada demasiado vulgar. Jim tem destas coisas, raramente se dando por satisfeito com as situações mais naturais. Para ele a estranheza é sempre mais atraente,



         Percorremos um caminho tão longo à procura disto

            E acabámos por deitá-lo a perder

            Tínhamos tudo

            O que os amantes alguma vez tiveram

            Deitámo-lo fora

            E não estou triste



            Bem, estou louco



eu já sabia e por isso pedi-lhe para ter calma, que me deixasse tomar conta da situação. Jim nem me olhou. Sei que me ouviu e o facto de não ter tido nenhuma reacção é apenas um sinal de consentimento. Aquela mulher não correspondia ao que dela esperaria, pelo menos por causa da momentânea e espontânea resposta, mas lendo-lhe os pensamentos tenho a certeza que Jim ainda quer esperar para ver o que vai suceder a seguir. Completamente desinteressada do que estaríamos a pensar estava aquela mulher ali especada bem na nossa frente que não quis perder muito mais tempo. – Como é? Querem que vos leve a beber a algum lado? – Finalmente, algo que a ambos entusiasmou após a primeira visão que aos dois tinha deixado água na boca. – Vamos onde quiseres – disse-lhe. – Vou levá-los lá acima às nuvens. Venham atrás de mim que não se arrependerão. Esta vai ser para os dois uma noite que não mais irão esquecer. – Confesso que estremeci um pouco quando a ouvi falar assim e reparei que também Jim voltou à sua melhor cara. Aquela proposta arrojada era do seu agrado. Típico de Jim. E lá seguimos como duas crianças agarrados à curta saia da mãezinha. Onde ela nos levar nós vamos. Onde ela nos transportar nós bebemos, pensei, e tenho a certeza que Jim também. Era bastante cedo e aquela noite estava extraordinariamente quente. O nosso objectivo primeiro de nos encaminharmos para a praia não estava metido de parte, mas para já, naquele momento, estava adiado. Talvez mais tarde. De certeza que sim. Lá chegaríamos. Na praia, como desejávamos, iremos esticar os corpos, deixar as costas roçar na areia e sem trocar palavras e conversa vã, apenas pensamentos, iremos saudar um novo dia. Quem sabe até chorar… Mais tarde, sim. Agora não.



Guardava

nela

O fresco milagre

da

surpresa



corpos de homens e mulheres, suados, misturavam-se com os nossos. Com grande dificuldade lá nos íamos mexendo e conquistando palmo a palmo o caminho do bar naquele recinto onde tínhamos acedido a entrar a convite daquela mulher que até ali nos guiou mesmo sem nunca nos ter dito o seu nome. Para nós era, continuava a ser, apenas, aquela mulher vistosa por quem instantes antes nos tínhamos deixado enfeitiçar ao ponto de pensarmos que nos daria uma noite louca de sexo que nunca mais iríamos esquecer. Mas, agora, neste momento, no meio de tantos desnudos troncos femininos, nem Jim nem eu tínhamos a certeza disso. A excitação era um estado de espírito permanente para qualquer um como nós, amantes da beleza feminina, ali caídos naquele espaço de diversão nocturna apinhado até mais não. Ainda assim teimámos em segui-la. E ela levou-nos até onde nós queríamos. Ao bar. Pedimos cerveja. Gelada. Foi o que nos serviram. Ela optou por um gin com água tónica. Armados seguimos rumo ao centro da pista de dança. Em simultâneo acendemos três cigarros enquanto nos debruçávamos sobre a música que estava a tocar antes de agitarmos ao mesmo tempo os músculos dos nossos corpos sedentos de acompanharem os da maioria, transpirados, brilhantes e desconexos, agitando-se apenas ao sabor da música que talvez para a maior parte deles fosse o menos importante. Para nós, sobretudo para mim, e para Jim, não.



         - Momento de liberdade interior

            quando o espírito está aberto & o

            universo infinito revelado

            e a alma se deixa vaguear

            deslumbrada & confusa à procura

            aqui & ali de mestres e amigos



e durante alguns, os primeiros instantes, parávamos para escutar. Era sempre assim naquelas situações. Foi quando deparámos que naquele pequeno palco iluminado por luzes de várias cores alguém entoava “Like a Rolling Stone”, numa versão muito semelhante à do Dylan. E então deixámo-nos ir. Jim, eu, aquela mulher de que ainda não sabíamos sequer o nome, as cervejas geladas, o gin tónico, o fumo que nos envolvia e que parecia inundar todas as bocas, narizes, dedos e tudo o mais, e que nos aconchegava, e aquela voz que rasgava por ali adentro, e toda aquela gente que se amontoava parecia estar em transe. E nós também. Quisemos fazer um esforço para ali permanecer mais tempo mas de repente começou a faltar-nos o ar. Aquela mulher sugeriu que a seguíssemos até à linha de partida e que lá chegados, se nos apetecesse, poderíamos continuar atrás dela até à porta de casa. Como dois cães sedentos de paixão e com uma vontade enorme de saltar para cima de uma cadela com o cio, obedecemos. Voltámos a percorrer o espaço que anteriormente tínhamos palmilhado mas agora no sentido oposto. E foi nesse percurso, na volta, que ela nos surpreendeu de uma maneira como até ali ainda não o tinha feito. Pela primeira vez, desde que a tínhamos visto, aquela mulher demonstrou-nos que afinal não era apenas uma visão deslumbrante capaz de nos fazer sentir um desejo animalesco, mas muito mais que isso. Durante aquele trajecto que fizemos em passada suave e tranquila, com aquilo que nos foi dizendo mostrou-nos que para além de umas pernas capazes de endoidecer, aquela mulher tinha muito mais para dar, o que a tornava a partir dali mais perigosa do que inicialmente desejaríamos. A inteligência é uma qualidade não nos era apetecida no início daquela noite, pelo menos naquele momento em que a vislumbrámos pela primeira vez. – Vou levá-los a um sítio onde até hoje nunca imaginaram chegar – disse-nos. – Como sabes que algum dia quisemos lá ir? – perguntei. – Não precisaram de dizer nada. Nunca iriam precisar de dizer. Bastou encontrá-los, vê-los e ouvi-los para perceber. Foi quanto bastou – atirou, sem rodeios. A mim pareceu-me arrogante a sua postura, aquela convicção que as palavras ditas continham. Não tenho a certeza se Jim pensaria como eu. Não o vi esboçar qualquer reacção. Apenas se deixava ir, e eu, quase sem querer, também. Ir ao lugar que aquela mulher nos anunciou sem dizer na verdade onde. Ao sítio onde até hoje nunca imaginámos chegar, era o que sabíamos.

                                                                                         (continua)

Alguns meses antes do fim do milénio (segunda parte)


         Naquela viagem, durante algum tempo, Anabela não fez parte dos meus pensamentos até que para os lados de Torres Vedras os primeiros acordes de “Wintertime Love trouxeram-me à memória os dias em que nos conhecemos.

         No primeiro momento em que acertei o meu olhar com o dela, em pleno Blues Cafe apinhado de gente, senti uma vontade enorme de comê-la logo ali. Durante os breves segundos daquela insistente e cúmplice troca de olhares, acompanhada por um mal disfarçado sorriso que me deixou enfeitiçado, senti uma atracção física tão forte que só descansei quando praticamente a obriguei a deixar-me levá-la até casa às tantas da madrugada, não aceitando teimosamente como desculpa o facto de me repetir vezes sem conta que tinha a cozinha e o quarto completamente de pantanas. E eu queria lá saber disso?

Os primeiros tempos passados ao lado de Anabela acabaram por ser simplesmente fantásticos e extraordinariamente revigorantes. É também verdade que anteriormente não tinha tido grandes experiências amorosas e o tempo máximo das relações que tinha vivido raramente chegavam à celebração do primeiro aniversário. O relacionamento mais longo da minha vida – catorze meses – estava sepultado num liceu.

         Tinha agora trinta e seis anos e já vivia com Anabela ia para dois e qualquer coisa. Chegou a passar-me até pela cabeça que a idade estava a fazer-me assentar. Mesmo a minha mãe, que toda a vida viveu em Alpedrinha e nunca se deslocava a Lisboa, fazia questão de enviar, pelo Natal e pela Páscoa, postais de boas-festas endereçados à Anabela. Julgava, por ventura, que eu tinha definitivamente tomado juízo. De facto, a dona Arminda – como a trato desde que me lembro – não merecia um filho assim tão desnaturado. Deixei a terra no dia em que fui incorporado para cumprir os dezoito meses de serviço militar e fixei-me a partir daí perto de Lisboa. Nos últimos dezasseis anos terei ido uma dúzia de vezes – se tanto – visitá-la. E a pobre mulher merecia mais. O meu pai morreu jovem, numa data que relembro com facilidade: 3 de Julho de 1971. E a dona Arminda, na altura apenas com os vinte e três anos, teve de fazer das tripas-coração para me criar, a mim, o desnaturado que só se lembra dela quatro vezes por ano: no aniversário, no dia da mãe, no Natal e no dia em que o marido partiu e para sempre tirou o sorriso daquele rosto que, diziam, era dos mais deslumbrantes das beiras, desde a Guarda a Castelo Branco. Três de Julho é o dia mais difícil da vida da dona Arminda. Sei como ela tem dificuldades em passá-lo e, por isso, eu não falhava tentando sempre levantar-lhe um pouco o ânimo durante a curta conversa ao telefone que tínhamos e que se resumia normalmente a um rol de perguntas desfiadas por ela e de meias respostas da minha parte. Aliás, como sucedeu há precisamente meia dúzia de dias.

         Da situação, enfim, triste por ter ficado sem pai muito cedo tinha resultado uma coincidência que considerava no mínimo insólita e que só tinha dado conta há pouco tempo - o absurdo acaso do dia da morte de Jim Morrison em Paris em 3 de Julho de 1971. Não era que isso me tivesse tirado alguma vez o sono, mas valeu-me, pelo menos, períodos de grande reflexão quando o descobri enquanto levava a cabo aquele trabalho que tinha feito.

         Aliás, os dois não tinham, nem de perto, qualquer outra coisa em comum. Um tinha sido o mito de uma geração. Louco, intragável, perdido, indomável, um resistente capaz de abandonar tudo por nada e que acabou por morrer no interior de uma banheira em Paris, depois de mais uma noite de excessos, com apenas vinte sete anos. E o meu pai, que nunca chegou a sair do circuito Alpedrinha/Fundão/Alpedrinha, morreu com um ataque cardíaco fulminante e os únicos excessos que se lhe conheciam eram o trabalho e a dedicação à família. Morreu durante o sono. Tinha apenas vinte sete anos.

                                                                                                             (continua)

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Alguns meses antes do fim do milénio (primeira parte)


         Raios a partam. Não estou mais para a aturar. Não fala e não me ouve. Que se lixe(!) ela e os que lhe enchem a cabeça. Sempre lhe disse que aquilo que tinha era aquilo que via. Nunca lhe prometi nada. Mas assim não dá mais.

         Um princípio de noite escaldante.

         - Nunca mais me pões a vista em cima – gritei ao mesmo tempo que peguei nas chaves do carro que estavam em cima da pequena mesa junto à entrada. - Não te preocupes com o sítio onde vou dormir e nem sequer precisas de mudar a fechadura, virei cá buscar as minhas coisas quando quiseres.

         E saí batendo com a porta de tal maneira que muitos dos vizinhos do prédio que estariam a jantar naquela altura ter-se-ão engasgado com o susto.

         O desnorte com que abandonei o apartamento que partilhei durante dois anos e meio com Anabela fez-me dar duas voltas ao quarteirão à procura do carro. Tinha-o estacionado poucas horas antes e já não me lembrava onde. Era sempre assim qualquer que fosse o dia da semana ali por aquelas bandas do Bairro Alto.

         Finalmente, depois de uma meia dúzia de voltas, alguns abrandamentos de passada para ordenar as ideias e a memória, lá dei com o Éfe Dido (nome íntimo que lhe atribuí pelo facto das letras de matrícula serem FD) numa íngreme travessa entre dois carros que o tinham entalado de maneira absurda. Ainda me passou pela cabeça que só com a ajuda de um guindaste conseguiria tirá-lo dali sem amolgar os pára-choques.

         O esforço da manobra que fui obrigado a efectuar acabou por me fazer esquecer por momentos a raiva que sentia e o que me tinha levado a sair de casa no momento em que me ia sentar à mesa para jantar. Mas foi uma raiva contida por muito pouco tempo. Ao passar frente à porta do prédio de Anabela ainda me dei ao trabalho de abrir rapidamente o vidro do carro para gritar:

         Bardamerda – como se ela me ouvisse.

Quase sem querer dei comigo na calçada de Carriche a caminho da A8, na direcção de São Martinho do Porto.

         A discussão com Anabela tinha começado precisamente por lhe ter dito que queria ir sozinho passar uns dias a São Martinho do Porto para assentar ideias sobre o futuro da nossa relação. Andávamos com falta de paciência e cansados e até já tínhamos conversado sobre a possibilidade de um afastamento ainda que fosse por pouco tempo. Só que para Anabela esse período de hibernação tinha de ser na mesma cidade.

         E a discussão ficou para lá de feia quando ela me atirou com o cinzeiro, repleto de pontas de cigarro, para cima dos pés e vociferou:

         – Vai mas não voltes.

         Há dois ou três meses que as coisas tinham começado a ficar estranhas. Na verdade, Anabela nunca compreendeu que o meu trabalho de freelancer não tinha horas, folgas, fins-de-semana e nem sequer feriados. Nos primeiros dois anos de relação escondeu e conteve o stress que tal modus vivendi lhe causava e foi acumulando dias, meses de frustração e de isolamento, até que a partir de certa altura começou a embirrar por tudo e por nada sempre que lhe dizia não saber bem a que horas iria chegar a casa. Às vezes, quando voltaria.

         Em Loures, quando abrandei um pouco para atravessar a Via Verde, olhei para o relógio no tablier do carro e reparei que pouco passava das nove e meia. Contudo, era ainda possível vislumbrar o azul do céu, um pouco escurecido. O dia tinha estado quente e a noite também prometia altas temperaturas. O meu ar condicionado era a janela do lado do pendura meio aberta, já que a minha não dava jeito por causa da velocidade e do barulho do vento mas, na verdade, isso não ajudava muito ao arrefecimento no interior do carro. Sentia as costas coladas à camisa e ao banco. Nunca gostei muito do tempo quente, pelo menos na cidade. No Verão, sempre que conseguia e me era possível, fugia para São Martinho do Porto, em vez de seguir para Sul. O Algarve tinha sempre calor e gente a mais para o meu gosto.

         Com alguma dificuldade, no meio de tanta papelada e coisas que já deviam estar no lixo há muito tempo, consegui arrancar uma cassete que estava lá bem no fundo do porta-luvas. Meti a fita no leitor e comecei a ouvir os acordes iniciais de “Waiting For The Sun” dos The Doors.

Hello, I Love You” – grande malha.

Acendi o primeiro cigarro daquela viagem que devia durar cerca de uma hora até ao destino. Por entre duas profundas bafuradas senti o esboço de um sorriso no rosto quando instantaneamente me lembrei de um trabalho que tinha feito há pouco tempo a propósito dos trinta anos de edição daquele disco, em que tinha tentado desmontar todas as faixas nele contidas através de diálogos imaginados com Jim Morrisson, matéria que vendi a uma revista especializada e destinada a um público teenager esfomeado em perpetuar alguns mitos mesmo que deles em vida pouco ou nada tenham conhecido, ouvido e visto.

         Morrison foi sempre uma personagem que me intrigou. Juntando isso ao facto de gostar da música dos The Doors, aquele foi um trabalho que me deu enorme prazer.

         A vida, mas sobretudo a morte, daquele tipo que consumia drogas e álcool desmedidamente, que queria ser poeta em vez de cantor, que abominava a fama mas tinha atitudes que só a aumentavam quase sem se dar conta, tinham-me dado pano para mangas durante algumas semanas.
                                                                                                                                     (continua)

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Prólogo

 “(…) Ninguém se consegue lembrar de um romance inteiro. Ninguém consegue descrever um filme, uma escultura, uma pintura, mas enquanto houver seres humanos, as canções e as poesias sobreviverão.

Se a minha poesia pretende atingir alguma coisa, é libertar as pessoas dos limites em que se encontram e que sentem.” – Jim

 

Dizem que morreu há 45 anos. Talvez não.

Criei um blog para quem gosta de Ler Devagar.

 

James Douglas Morrison, aliás Jim Morrison, ou simplesmente Jim, para amigos, discípulos e fãs, nasceu em Melbourne, Florida, em 8 de Dezembro de 1943 e morreu em Paris, França, em 3 de Julho de 1971. Uma morte prematura e misteriosa, uma vida à beira do abismo ou ultrapassando os limites, tornaram-no mito, lenda viva do rock & roll, já lá vão quatro décadas.

Este blog contém excertos traduzidos de “Wilderness”, um conjunto de poemas inéditos de Jim Morrison, dispersos em papéis e cadernos, e traduções livres das músicas do álbum “Waiting for the Sun”, dos The Doors, editado pela Elektra, em 1968. Quase tudo o resto que aqui se pode ler é ficção e provavelmente só tem cabimento para o seu autor.




             - O que é a conexão?

            - É quando 2 movimentos que julgamos excluírem-se mutuamente & infinitos, se encontram num momento.

            - Do Tempo?

            - Sim.

- O tempo não existe.

Não existe tempo.

- O tempo é uma plantação ordenada.



Entro e saio do bar de má reputação. Passaram dois ou três minutos no máximo. Logo à chegada uma mulher de aspecto duvidoso com uma dezena de pregos espalhados pela face a mim se dirigiu oferecendo-me aquela que iria ser a melhor noite da minha vida. Virei-lhe costas. Inicialmente pensei ir ao encontro do homem grande e escuro com o umbigo encostado ao balcão para lhe pedir algo forte para emborcar. Desisti. Saí porta fora mal esta se tinha imobilizado após a minha chegada. A noite na cidade está quente. Os corpos fervilham. Agitam-se, até nas ruas. Eu estou desolado mas bem desperto e continuo cheio de sede. Deparo com Jim ao virar da esquina. Seguimos lado a lado. Caminhamos rodeados de sombras na direcção da praia. Apetece-nos o cheiro do mar. A visão sublime das luzes do céu descoberto daquela noite generosa sem lua que nos levará a esperar pelo sol da manhã seguinte sem grande dificuldade. E partilhamos frases que de repente não parecem fazer qualquer sentido,



A Noite começou

            cheia de sossego

Não consigo descrever o

            modo como ela está vestida

Ela acederá a estranhas

            solicitações

Quaisquer sugestões

O que quer que agrade ao seu conviva



apenas pela demora em encontrar sintonia. Eu continuo cheio de sede. Jim prefere afastar-se da multidão. Seguimos por isso a caminho da costa. E vamos. E à medida que nos vamos aproximando começamos a sentir a leve brisa marítima a roçar-nos as faces. E as luzes vão desvanecendo. E o movimento diminuindo. Agora, a cada olhar que com o nosso se cruza damos sem querer a máxima importância.
                                                                                                                                                     (continua)