sexta-feira, 29 de abril de 2016

fx. 1 – hello, i love you (primeira parte)


E passam gays, lésbicas e outros que não são nem uma coisa nem outra. E passam seres solitários. Pernas que se cruzam com as nossas, algumas desnudas que com a menor dificuldade captam a atenção do Jim e a minha. Duas, pertenças de uma musa em particular, e Jim fica excitado,



            És ela

            Pareces ela

            Como poderias ser quando

            Nunca ninguém pôde



mas ela não nos liga. Nem tão pouco faz caso algum. E prossegue altiva e distante descendo a rua no sentido contrário ao nosso. Jim obriga-me a dar meia-volta para seguirmos atrás. Ela sente-se desconfortável mas nem mesmo assim acelera o compassado passo. O andar que nos parece conferir ser pertença de alguém dona de uma forte personalidade. Quase esboçamos uma intenção de corrida de modo a chegarmos perto. Acertamos o ritmo quando nos encontramos a dois metros de distância. Deitados, Jim e eu, conseguiríamos tocá-la. Um de nós veria mesmo por debaixo da saia curta que vai roçando aquele par de pernas e que nos embriaga naquela hora. Em uníssono e plenos de desejo gritámos: - Olá, eu amo-te! - mas ela não nos liga. A bem da verdade actua como se nada estivesse por ali a acontecer. Insistimos. Outra vez ao mesmo tempo: - Não nos vais dizer o teu nome? - e nada. Segue o seu caminho, equilibrando-se experientemente no alto dos seus longos e finos sapatos de salto alto enquanto desce a rua. Cruza-se com uns e com outros que vai cegando à medida que o seu olhar com os deles se atravessa. E nós atrás vamos rindo nas suas doentias caras, gozando-os e até atiçando-os, perguntando a cada um que por ela passa se acha que teria alguma vez capacidade para foder aquela rainha com olhos de anjo(?) - Olá, eu amo-te! - insistimos. - Não nos vais dizer o teu nome? - ela na dela. - Deixa-nos entrar no teu jogo - acrescentámos daquela vez. Mas ela segue de nariz no ar. Nem uma, nem duas. Não quer saber de nada. Ou, pelo menos, finge bem que não quer. Jim e eu bem sabemos que estamos à beira de um colapso. Foi paixão à primeira vista. Logo agora que íamos a caminho da praia para esperar pelo sol da manhã seguinte. Já não estou tão desolado naquele instante mas ainda continuo cheio de sede… de sexo, e, pelo que vejo, Jim também. E estamos despertos. O sol vai esperar. As estrelas também. E o mar. Por ora seguimos aquela de que não sabemos sequer o nome. Adoramo-la como se fosse uma daquelas estátuas que preenchem as igrejas. É assim que ela se nos afigura. Os seus braços são pecaminosos e as suas pernas são longas. E estão descobertas. A saia é demasiado curta. E está calor. A noite faz transpirar. Aquela noite faz, sobretudo quando ela se move descendo aquela rua enquanto é seguida por Jim e por mim. Os nossos cérebros gritam alto uma qualquer canção antiga.



         Flores de sentimentos levam de volta aos

            perdedores recuando em todas as direcções

            dormindo estas horas de loucura

            Nunca mais vou acordar bem

            disposto.                   Enjoa-me o cheiro

            destas botas.            Histórias de animais

            nos bosques              nada estúpidos                    mas

            como os índios mostrando-se                   os

            olhos pequenos na noite                conheço

            a floresta & a malévola maré da lua

            «Temos um ar divertido não é rapaz?»

            Mais-que-perfeito.              Esquecido.    As canções

            são bons estímulos para o riso.



E nada. Ela nada. Até as pedras da calçada parecem cumprimentá-la no momento em que os seus elegantes sapatos de salto alto tocam a sua empoeirada cor. Vergam-se à sua passagem como cachorros pedinchando doces ao seu dono. Jim provoca-me ao perguntar se eu serei capaz de a fazer reparar em mim. - Como esperas poder alcançar uma raridade destas que não parece dar tréguas a ninguém - pergunta-me. Eu esboço-lhe apenas um murmúrio e enchendo-me de coragem desato em passo acelerado para só parar na frente daquela mulher. - Olá, olá, olá. - Sou surpreendido e Jim também. Ela cedeu, parou e, primeiro, sorriu, depois não aguentando mais o esforço que já vinha fazendo desde que encetámos aquela perseguição, riu e riu e riu mais ainda. Parecia que não queria deixar de rir. Jim, que a princípio até terá achado alguma graça a toda aquela situação, fechou o rosto. A reacção tida por aquela mulher, depois de criada tão elevada expectativa, era para ele considerada demasiado vulgar. Jim tem destas coisas, raramente se dando por satisfeito com as situações mais naturais. Para ele a estranheza é sempre mais atraente,



         Percorremos um caminho tão longo à procura disto

            E acabámos por deitá-lo a perder

            Tínhamos tudo

            O que os amantes alguma vez tiveram

            Deitámo-lo fora

            E não estou triste



            Bem, estou louco



eu já sabia e por isso pedi-lhe para ter calma, que me deixasse tomar conta da situação. Jim nem me olhou. Sei que me ouviu e o facto de não ter tido nenhuma reacção é apenas um sinal de consentimento. Aquela mulher não correspondia ao que dela esperaria, pelo menos por causa da momentânea e espontânea resposta, mas lendo-lhe os pensamentos tenho a certeza que Jim ainda quer esperar para ver o que vai suceder a seguir. Completamente desinteressada do que estaríamos a pensar estava aquela mulher ali especada bem na nossa frente que não quis perder muito mais tempo. – Como é? Querem que vos leve a beber a algum lado? – Finalmente, algo que a ambos entusiasmou após a primeira visão que aos dois tinha deixado água na boca. – Vamos onde quiseres – disse-lhe. – Vou levá-los lá acima às nuvens. Venham atrás de mim que não se arrependerão. Esta vai ser para os dois uma noite que não mais irão esquecer. – Confesso que estremeci um pouco quando a ouvi falar assim e reparei que também Jim voltou à sua melhor cara. Aquela proposta arrojada era do seu agrado. Típico de Jim. E lá seguimos como duas crianças agarrados à curta saia da mãezinha. Onde ela nos levar nós vamos. Onde ela nos transportar nós bebemos, pensei, e tenho a certeza que Jim também. Era bastante cedo e aquela noite estava extraordinariamente quente. O nosso objectivo primeiro de nos encaminharmos para a praia não estava metido de parte, mas para já, naquele momento, estava adiado. Talvez mais tarde. De certeza que sim. Lá chegaríamos. Na praia, como desejávamos, iremos esticar os corpos, deixar as costas roçar na areia e sem trocar palavras e conversa vã, apenas pensamentos, iremos saudar um novo dia. Quem sabe até chorar… Mais tarde, sim. Agora não.



Guardava

nela

O fresco milagre

da

surpresa



corpos de homens e mulheres, suados, misturavam-se com os nossos. Com grande dificuldade lá nos íamos mexendo e conquistando palmo a palmo o caminho do bar naquele recinto onde tínhamos acedido a entrar a convite daquela mulher que até ali nos guiou mesmo sem nunca nos ter dito o seu nome. Para nós era, continuava a ser, apenas, aquela mulher vistosa por quem instantes antes nos tínhamos deixado enfeitiçar ao ponto de pensarmos que nos daria uma noite louca de sexo que nunca mais iríamos esquecer. Mas, agora, neste momento, no meio de tantos desnudos troncos femininos, nem Jim nem eu tínhamos a certeza disso. A excitação era um estado de espírito permanente para qualquer um como nós, amantes da beleza feminina, ali caídos naquele espaço de diversão nocturna apinhado até mais não. Ainda assim teimámos em segui-la. E ela levou-nos até onde nós queríamos. Ao bar. Pedimos cerveja. Gelada. Foi o que nos serviram. Ela optou por um gin com água tónica. Armados seguimos rumo ao centro da pista de dança. Em simultâneo acendemos três cigarros enquanto nos debruçávamos sobre a música que estava a tocar antes de agitarmos ao mesmo tempo os músculos dos nossos corpos sedentos de acompanharem os da maioria, transpirados, brilhantes e desconexos, agitando-se apenas ao sabor da música que talvez para a maior parte deles fosse o menos importante. Para nós, sobretudo para mim, e para Jim, não.



         - Momento de liberdade interior

            quando o espírito está aberto & o

            universo infinito revelado

            e a alma se deixa vaguear

            deslumbrada & confusa à procura

            aqui & ali de mestres e amigos



e durante alguns, os primeiros instantes, parávamos para escutar. Era sempre assim naquelas situações. Foi quando deparámos que naquele pequeno palco iluminado por luzes de várias cores alguém entoava “Like a Rolling Stone”, numa versão muito semelhante à do Dylan. E então deixámo-nos ir. Jim, eu, aquela mulher de que ainda não sabíamos sequer o nome, as cervejas geladas, o gin tónico, o fumo que nos envolvia e que parecia inundar todas as bocas, narizes, dedos e tudo o mais, e que nos aconchegava, e aquela voz que rasgava por ali adentro, e toda aquela gente que se amontoava parecia estar em transe. E nós também. Quisemos fazer um esforço para ali permanecer mais tempo mas de repente começou a faltar-nos o ar. Aquela mulher sugeriu que a seguíssemos até à linha de partida e que lá chegados, se nos apetecesse, poderíamos continuar atrás dela até à porta de casa. Como dois cães sedentos de paixão e com uma vontade enorme de saltar para cima de uma cadela com o cio, obedecemos. Voltámos a percorrer o espaço que anteriormente tínhamos palmilhado mas agora no sentido oposto. E foi nesse percurso, na volta, que ela nos surpreendeu de uma maneira como até ali ainda não o tinha feito. Pela primeira vez, desde que a tínhamos visto, aquela mulher demonstrou-nos que afinal não era apenas uma visão deslumbrante capaz de nos fazer sentir um desejo animalesco, mas muito mais que isso. Durante aquele trajecto que fizemos em passada suave e tranquila, com aquilo que nos foi dizendo mostrou-nos que para além de umas pernas capazes de endoidecer, aquela mulher tinha muito mais para dar, o que a tornava a partir dali mais perigosa do que inicialmente desejaríamos. A inteligência é uma qualidade não nos era apetecida no início daquela noite, pelo menos naquele momento em que a vislumbrámos pela primeira vez. – Vou levá-los a um sítio onde até hoje nunca imaginaram chegar – disse-nos. – Como sabes que algum dia quisemos lá ir? – perguntei. – Não precisaram de dizer nada. Nunca iriam precisar de dizer. Bastou encontrá-los, vê-los e ouvi-los para perceber. Foi quanto bastou – atirou, sem rodeios. A mim pareceu-me arrogante a sua postura, aquela convicção que as palavras ditas continham. Não tenho a certeza se Jim pensaria como eu. Não o vi esboçar qualquer reacção. Apenas se deixava ir, e eu, quase sem querer, também. Ir ao lugar que aquela mulher nos anunciou sem dizer na verdade onde. Ao sítio onde até hoje nunca imaginámos chegar, era o que sabíamos.

                                                                                         (continua)

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