E passam gays, lésbicas e outros que não são nem
uma coisa nem outra. E passam seres solitários. Pernas que se cruzam com as
nossas, algumas desnudas que com a menor dificuldade captam a atenção do Jim e
a minha. Duas, pertenças de uma musa em particular, e Jim fica excitado,
És ela
Pareces ela
Como poderias ser quando
Nunca ninguém pôde
mas ela não
nos liga. Nem tão pouco faz caso algum. E prossegue altiva e distante descendo
a rua no sentido contrário ao nosso. Jim obriga-me a dar meia-volta para
seguirmos atrás. Ela sente-se desconfortável mas nem mesmo assim acelera o
compassado passo. O andar que nos parece conferir ser pertença de alguém dona
de uma forte personalidade. Quase esboçamos uma intenção de corrida de modo a
chegarmos perto. Acertamos o ritmo quando nos encontramos a dois metros de
distância. Deitados, Jim e eu, conseguiríamos tocá-la. Um de nós veria mesmo
por debaixo da saia curta que vai roçando aquele par de pernas e que nos
embriaga naquela hora. Em uníssono e plenos de desejo gritámos: - Olá, eu amo-te! - mas ela não nos
liga. A bem da verdade actua como se nada estivesse por ali a acontecer.
Insistimos. Outra vez ao mesmo tempo: -
Não nos vais dizer o teu nome? - e nada. Segue o seu caminho, equilibrando-se
experientemente no alto dos seus longos e finos sapatos de salto alto enquanto
desce a rua. Cruza-se com uns e com outros que vai cegando à medida que o seu
olhar com os deles se atravessa. E nós atrás vamos rindo nas suas doentias
caras, gozando-os e até atiçando-os, perguntando a cada um que por ela passa se
acha que teria alguma vez capacidade para foder aquela rainha com olhos de anjo(?) -
Olá, eu amo-te! - insistimos. - Não
nos vais dizer o teu nome? - ela na dela. - Deixa-nos entrar no teu jogo - acrescentámos daquela vez. Mas ela
segue de nariz no ar. Nem uma, nem duas. Não quer saber de nada. Ou, pelo
menos, finge bem que não quer. Jim e eu bem sabemos que estamos à beira de um
colapso. Foi paixão à primeira vista. Logo agora que íamos a caminho da praia
para esperar pelo sol da manhã seguinte. Já não estou tão desolado naquele
instante mas ainda continuo cheio de sede… de sexo, e, pelo que vejo, Jim
também. E estamos despertos. O sol vai esperar. As estrelas também. E o mar.
Por ora seguimos aquela de que não sabemos sequer o nome. Adoramo-la como se
fosse uma daquelas estátuas que preenchem as igrejas. É assim que ela se nos
afigura. Os seus braços são pecaminosos e as suas pernas são longas. E estão
descobertas. A saia é demasiado curta. E está calor. A noite faz transpirar.
Aquela noite faz, sobretudo quando ela se move descendo aquela rua enquanto é
seguida por Jim e por mim. Os nossos cérebros gritam alto uma qualquer canção
antiga.
Flores de sentimentos levam
de volta aos
perdedores recuando em todas as
direcções
dormindo estas horas de loucura
Nunca mais vou acordar bem
disposto. Enjoa-me o cheiro
destas botas. Histórias de animais
nos bosques nada estúpidos mas
como os índios mostrando-se os
olhos pequenos na noite conheço
a floresta & a malévola maré da
lua
«Temos um ar divertido não é rapaz?»
Mais-que-perfeito. Esquecido. As canções
são bons estímulos para o riso.
E nada. Ela
nada. Até as pedras da calçada parecem cumprimentá-la no momento em que os seus
elegantes sapatos de salto alto tocam a sua empoeirada cor. Vergam-se à sua
passagem como cachorros pedinchando doces ao seu dono. Jim provoca-me ao
perguntar se eu serei capaz de a fazer reparar em mim. - Como esperas poder alcançar uma raridade destas que não parece dar
tréguas a ninguém - pergunta-me. Eu esboço-lhe apenas um murmúrio e
enchendo-me de coragem desato em passo acelerado para só parar na frente
daquela mulher. - Olá, olá, olá. -
Sou surpreendido e Jim também. Ela cedeu, parou e, primeiro, sorriu, depois não
aguentando mais o esforço que já vinha fazendo desde que encetámos aquela
perseguição, riu e riu e riu mais ainda. Parecia que não queria deixar de rir.
Jim, que a princípio até terá achado alguma graça a toda aquela situação,
fechou o rosto. A reacção tida por aquela mulher, depois de criada tão elevada
expectativa, era para ele considerada demasiado vulgar. Jim tem destas coisas,
raramente se dando por satisfeito com as situações mais naturais. Para ele a
estranheza é sempre mais atraente,
Percorremos um caminho tão
longo à procura disto
E acabámos por deitá-lo a perder
Tínhamos tudo
O que os amantes alguma vez tiveram
Deitámo-lo fora
E não estou triste
Bem, estou louco
eu já sabia
e por isso pedi-lhe para ter calma, que me deixasse tomar conta da situação.
Jim nem me olhou. Sei que me ouviu e o facto de não ter tido nenhuma reacção é
apenas um sinal de consentimento. Aquela mulher não correspondia ao que dela
esperaria, pelo menos por causa da momentânea e espontânea resposta, mas
lendo-lhe os pensamentos tenho a certeza que Jim ainda quer esperar para ver o
que vai suceder a seguir. Completamente desinteressada do que estaríamos a
pensar estava aquela mulher ali especada bem na nossa frente que não quis
perder muito mais tempo. – Como é? Querem
que vos leve a beber a algum lado? – Finalmente, algo que a ambos
entusiasmou após a primeira visão que aos dois tinha deixado água na boca. – Vamos onde quiseres – disse-lhe. – Vou levá-los lá acima às nuvens. Venham
atrás de mim que não se arrependerão. Esta vai ser para os dois uma noite que
não mais irão esquecer. – Confesso que estremeci um pouco quando a ouvi
falar assim e reparei que também Jim voltou à sua melhor cara. Aquela proposta
arrojada era do seu agrado. Típico de Jim. E lá seguimos como duas crianças
agarrados à curta saia da mãezinha. Onde ela nos levar nós vamos. Onde ela nos transportar nós bebemos,
pensei, e tenho a certeza que Jim também. Era bastante cedo e aquela noite
estava extraordinariamente quente. O nosso objectivo primeiro de nos
encaminharmos para a praia não estava metido de parte, mas para já, naquele
momento, estava adiado. Talvez mais tarde. De certeza que sim. Lá chegaríamos.
Na praia, como desejávamos, iremos esticar os corpos, deixar as costas roçar na
areia e sem trocar palavras e conversa vã, apenas pensamentos, iremos saudar um
novo dia. Quem sabe até chorar… Mais tarde, sim. Agora não.
Guardava
nela
O fresco milagre
da
surpresa
corpos de
homens e mulheres, suados, misturavam-se com os nossos. Com grande dificuldade
lá nos íamos mexendo e conquistando palmo a palmo o caminho do bar naquele
recinto onde tínhamos acedido a entrar a convite daquela mulher que até ali nos
guiou mesmo sem nunca nos ter dito o seu nome. Para nós era, continuava a ser,
apenas, aquela mulher vistosa por quem instantes antes nos tínhamos deixado
enfeitiçar ao ponto de pensarmos que nos daria uma noite louca de sexo que
nunca mais iríamos esquecer. Mas, agora, neste momento, no meio de tantos
desnudos troncos femininos, nem Jim nem eu tínhamos a certeza disso. A
excitação era um estado de espírito permanente para qualquer um como nós,
amantes da beleza feminina, ali caídos naquele espaço de diversão nocturna
apinhado até mais não. Ainda assim teimámos em segui-la. E ela levou-nos até
onde nós queríamos. Ao bar. Pedimos cerveja. Gelada. Foi o que nos serviram.
Ela optou por um gin com água tónica.
Armados seguimos rumo ao centro da pista de dança. Em simultâneo acendemos três
cigarros enquanto nos debruçávamos sobre a música que estava a tocar antes de
agitarmos ao mesmo tempo os músculos dos nossos corpos sedentos de acompanharem
os da maioria, transpirados, brilhantes e desconexos, agitando-se apenas ao
sabor da música que talvez para a maior parte deles fosse o menos importante.
Para nós, sobretudo para mim, e para Jim, não.
- Momento de liberdade
interior
quando o espírito está aberto &
o
universo infinito revelado
e a alma se deixa vaguear
deslumbrada & confusa à procura
aqui & ali de mestres e amigos
e durante
alguns, os primeiros instantes, parávamos para escutar. Era sempre assim
naquelas situações. Foi quando deparámos que naquele pequeno palco iluminado
por luzes de várias cores alguém entoava “Like
a Rolling Stone”, numa versão muito semelhante à do Dylan. E então
deixámo-nos ir. Jim, eu, aquela mulher de que ainda não sabíamos sequer o nome,
as cervejas geladas, o gin tónico, o
fumo que nos envolvia e que parecia inundar todas as bocas, narizes, dedos e
tudo o mais, e que nos aconchegava, e aquela voz que rasgava por ali adentro, e
toda aquela gente que se amontoava parecia estar em transe. E nós também.
Quisemos fazer um esforço para ali permanecer mais tempo mas de repente começou
a faltar-nos o ar. Aquela mulher sugeriu que a seguíssemos até à linha de
partida e que lá chegados, se nos apetecesse, poderíamos continuar atrás dela
até à porta de casa. Como dois cães sedentos de paixão e com uma vontade enorme
de saltar para cima de uma cadela com o cio, obedecemos. Voltámos a percorrer o
espaço que anteriormente tínhamos palmilhado mas agora no sentido oposto. E foi
nesse percurso, na volta, que ela nos surpreendeu de uma maneira como até ali
ainda não o tinha feito. Pela primeira vez, desde que a tínhamos visto, aquela
mulher demonstrou-nos que afinal não era apenas uma visão deslumbrante capaz de
nos fazer sentir um desejo animalesco, mas muito mais que isso. Durante aquele
trajecto que fizemos em passada suave e tranquila, com aquilo que nos foi
dizendo mostrou-nos que para além de umas pernas capazes de endoidecer, aquela
mulher tinha muito mais para dar, o que a tornava a partir dali mais perigosa
do que inicialmente desejaríamos. A inteligência é uma qualidade não nos era
apetecida no início daquela noite, pelo menos naquele momento em que a
vislumbrámos pela primeira vez. – Vou
levá-los a um sítio onde até hoje nunca imaginaram chegar – disse-nos. – Como sabes que algum dia quisemos lá ir?
– perguntei. – Não precisaram de dizer
nada. Nunca iriam precisar de dizer. Bastou encontrá-los, vê-los e ouvi-los
para perceber. Foi quanto bastou – atirou, sem rodeios. A mim pareceu-me
arrogante a sua postura, aquela convicção que as palavras ditas continham. Não
tenho a certeza se Jim pensaria como eu. Não o vi esboçar qualquer reacção.
Apenas se deixava ir, e eu, quase sem querer, também. Ir ao lugar que aquela
mulher nos anunciou sem dizer na verdade onde. Ao sítio onde até hoje nunca
imaginámos chegar, era o que sabíamos.
(continua)
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