Estava tão empenhado e
concentrado a tentar recordar onde é que já tinha visto aquela figura que
apanhei um susto que me fez entornar o copo de uísque no momento em que ouvi
uma voz mesmo ao meu lado a perguntar:
- Que estás aqui a fazer?
A restabelecer-me daquela
inesperada situação e ao mesmo tempo a limpar com um guardanapo de papel o
líquido que tinha saltado do copo para cima do balcão apenas consegui
balbuciar:
- Estou só a beber um
copo. O António teve que sair por momentos, disse-me para entrar e esperar. Já
estive aqui ontem.
- Eu sei, tenho olhos na
cara, vi-te sair – disse-me.
Naquele instante percebi
que, embora mais velho, aquele era o homem que estava na maior parte das
fotografias ao lado do António. Magro, muito magro e, certamente, mais baixo do
que eu, com o cabelo completamente grisalho, um olhar intenso, marcante,
triste, misterioso, quase intimidante e uma voz forte e ao mesmo tempo
arrebatadora.
- O que fazes? –
perguntou-me enquanto se sentou ao meu lado.
- Como assim?
- Qual é o teu trabalho?
- Bem, sou jornalista,
escrevo umas coisas.
Riu-se e eu não percebi o
motivo.
- Qual é graça?
- Desculpa – respondeu –
não me ri de ti. A verdade é que estou à tua espera há muito tempo. Tinha a
certeza que num dia assim irias aparecer.
- Isso quer dizer
exactamente o quê? – perguntei ligeiramente assustado.
- É que hoje eu faço anos,
mas em vez de receber sou eu que quero dar algo.
- A mim?
- Sim, quero dar-te uma
história. No fim fazes o que quiseres. Podes revelá-la ou não, que é lá
contigo, mas desde já te garanto que, embora seja verdade tudo o que te vou
contar, não será fácil fazeres com que as pessoas acreditem.
Naquele momento ainda não
tinha conseguido perceber se aquele homem estava no seu estado normal ou se já
tinha bebido uns copos, mas satisfazia-me o facto de saber que tinha com que me
entreter até o António regressar.
- Como te disse, hoje,
nove de Julho… faço vinte e oito anos.
Fiquei imóvel, apenas a
observar o movimento dos seus olhos e à espera que ele acrescentasse alguma
coisa que me fizesse entender o que tinha acabado de dizer.
- Deves achar estranho
isto mas na verdade eu voltei a nascer um dia depois de ser enterrado.
Devem ter passado apenas
alguns segundos mas o silêncio que se seguiu àquela revelação pareceu-me uma
eternidade. Quase sem respirar, acendi outro cigarro e enchi novamente o copo
com uísque. Tentava ainda ordenar as ideias quando voltei a escutar aquela voz,
ligeiramente enrouquecida, ao mesmo tempo firme, segura e sem hesitações.
- Queres ouvir a história?
- Claro – respondi.
Ali ao lado, aquele homem,
que para mim ainda não tinha nome, desviou os olhos dos meus, fixou-os em
qualquer coisa indefinida e depois de, em cima do balcão, unir as mãos com os
dedos cruzados foi dizendo:
- As pessoas criam as suas próprias verdades
e, mesmo que não tenham a certeza de coisa alguma, a maior parte das vezes não
querem saber o que é mesmo verdade e, nada, nem mesmo na dúvida, as faz mudar
de opinião. Sabes, há coisas que sabemos e há coisas desconhecidas, e entre
elas, existem as portas. Mas a maioria não está preparada para abri-las e,
assim, essas supostas verdades podem até não passar na realidade de mentiras
mas elas nem dão conta disso e acabam mesmo sem se aperceberem por alimentá-las
e viver assim para o resto das suas vidas.
- Isso lembra-me qualquer
coisa que já terei lido – disse-lhe.
Quando me aproximei da
entrada do pequeno bar, exceptuando a ausência de nevoeiro, tudo me pareceu
exactamente na mesma como na véspera. Ainda hesitei por momentos. Ocorreu-me
que poderia ser um abuso da minha parte dirigir-me ali mais uma vez sozinho.
Afinal, aquele espaço era, acima de tudo, a casa do António. O barulho que vinha
do interior era também o mesmo mas desta vez eu já sabia que era apenas da
televisão – corridas de cavalos, quase de certeza.
Quando, finalmente, decidi
que devia bater à porta acabei surpreendido com a sua brusca abertura e com a
presença de rompante do António que me assustou e fez com que perdesse o
contacto com o chão.
- Ah, és tu! Gostaste
de cá estar, hein? – vociferou aceleradamente.
- Não quero incomodar –
respondi.
- Que conversa é essa?
Para gente amiga esta casa está sempre aberta – atirou em três tempos – só que
eu tenho que ir lá abaixo a São Martinho do Porto para falar com uma pessoa.
- Mas está tudo bem? –
perguntei depois de perceber uma expressão carregada e de preocupação no rosto
do António.
- Nem por isso. Aconteceu
uma coisa estúpida. Estava ali nas calmas a ler o jornal, tocou o telefone e
deram-me a notícia de dois tipos com quem trabalhei que morreram… uma merda,
pá... Dois homens bons. Um era daqui, a miúda dele trabalha ali… tenho que ir
lá abaixo falar com a família.
- Quer que vá consigo?
- Obrigado, não vale a
pena, eu vou lá num instante, deixa-te ficar por aqui. Vieste beber um copo e é
isso que vais fazer. A casa é tua, aliás, a garrafa que ontem não despejaste
ainda está no mesmo sítio… e o copo também. Por isso, serve-te, que eu não
demoro – atirou visivelmente nervoso.
Resolvi entrar depois de
ver desaparecer o seu carro em grande velocidade no meio daquela escuridão da
serra. Fechei a porta e, imediatamente, percebi que no mesmo banco, na mesma
posição e a ver exactamente a mesma programação televisiva, estava o sujeito da
noite anterior. Estranhei que o António não tivesse mencionado o facto de estar
outra pessoa naquele espaço, mas não me preocupei muito por isso. Larguei as
chaves do carro em cima do balcão ao lado de uma espécie de bloco de notas que
se encontrava aberto e onde era possível observar alguns rabiscos. Disse
boa-noite mas talvez por causa do barulho que saía do televisor não ouvi
resposta alguma.
Ao sentar-me consegui ler
o que estava escrito naqueles apontamentos. Eram palavras soltas: pescadores
portugueses… um madeirense… afogados ao largo do Cabo… acidente… António de Jesus Castro… São Martinho do
Porto… dono da embarcação… João Olegário Tomás… Paul do Mar…Slangkop/Scarborough… uma semana… decorrem
buscas… seis mortos… Ao ler aquelas anotações soltas recordei-me do que
António me tinha contado sobre os muitos momentos de terror passados em alto
mar. Livrou-se de boa, pensei.
Afastei um pouco o bloco e reparei, tal como tinha dito, que ali estavam em cima
do balcão o copo que eu tinha usado e a mesma garrafa de uísque. Precisamente
no mesmo sítio. Servi-me. Acendi um cigarro. Tentei distrair-me a olhar para a
televisão, para aquelas corridas de cavalos que mais pareciam não ter fim mas
cansei-me depressa e optei por me perder a observar detalhadamente as muitas
fotografias que estavam penduradas na parte interior do balcão e que coabitavam
com as garrafas nas prateleiras. Em todas estava o António, bastante mais novo,
sempre acompanhado por outros homens. Curiosamente, reparei que era sempre o
mesmo que se apresentava ao seu lado em todas as fotografias. Talvez um grande amigo, pensei.
Ao fitar com redobrada
atenção a cara daquele parceiro do António senti algo de estranho. De repente,
pareceu-me alguém que eu conhecia, não me lembrava era de onde.
Ninguém sai daqui vivo, agora / Tu levas os teus,
eu vou levar os meus / Vamos conseguir, se tentarmos
- salvar uma alma já
arruinada. Alcançar o sossego.
Saquear ouro verde
num ataque pirata & viver
de novo a glória de outrora.
Todos nós envelhecemos e os jovens se fortalecem /
Pode levar uma semana e pode levar mais tempo
A França é a 1.ª, os homens de
Nogales
atravessam a fronteira –
terra de eterna adolescência
de desespero sem par
em qualquer lugar do perímetro
Mensagem das imediações
chamando-nos para casa
Este é o lugar privado de uma
nova ordem. Precisamos de salvadores
Que nos ajudem a sobreviver à
viagem.
Quem virá agora?
Ora escutem
Começámos a travessia
Quem sabe? pode acabar mal
Eles têm as armas mas nós temos a maioria / Vamos
vencer, sim, estamos a dominar
Bem, vou contar-vos uma história de
whiskey,
mística & homens
De crentes, & como
tudo começou
Primeiro havia mulheres &
crianças que obedeciam
à
lua
Depois a luz do dia trouxe saber
& febre
&
doença muito cedo
Podes tentar lembrar-me
em vez do outro
podes
Podes ajudar-me a perceber
Que a nossa autoridade é
insegura
Os teus dias de festa acabaram / A noite está a
chegar
Tenho de deixar esta ilha,
Debatendo-me para nascer
das trevas.
Sombras da noite rastejam durante anos / Tu andas
pelo chão com uma flor no cabelo / Tentando dizer que ninguém entende / A
trocar as horas por um punhado de moedas
Pela minha respiração sei do
que falo & o que vi
precisa de ser contado.
Vamos conseguir, estamos no nosso melhor / Vamos
juntar-nos uma vez mais
Olhando para trás
para a minha vida
assaltam-me a memória
postais
ilustrados
Fotografias danificadas
cartazes desaparecidos
De um tempo que não posso fazer
regressar
Vamos juntar-nos uma vez mais / Vamos juntar-nos,
precisamos, vamos juntar-nos
Daniel deixou-me sozinho
por volta das sete da tarde. Entrava, de novo, ao serviço daí a uma hora e
tinha que passar por casa. Durante aquele tempo em que estivemos juntos tentou
vezes sem conta que lhe falasse da noite anterior. Por entre palavras, risos,
cervejas, tremoços e duas bifanas, ainda acabou por me deixar mais curioso
quando abordámos a situação estranha que passei no bar que tinha recomendado e
ele me falou das histórias insólitas e até assustadoras envolvendo fantasmas,
espíritos, feitiçaria e magia negra que António às vezes contava do tempo que
tinha vivido em África. Acrescentou também que, por vezes, um ou outro amigo
com quem tinha trabalhado por lá o vinha visitar e nesse caso poderia muito bem
ser um deles.
Depois de Daniel se
afastar permaneci mais algum tempo por ali sozinho com os meus pensamentos na
esplanada mais central de São Martinho do Porto. Até que reparei em Manuela,
que se encontrava à porta da albergaria e lembrei-me naquele instante que lhe
tinha ganho uma aposta e ela me devia um café. Sorri-lhe de longe quando dei
conta que me tinha visto e até fiquei surpreendido quando a vi rir com as duas
mãos no ar e os dedos completamente abertos como que a avisar que só estaria
disponível às dez horas. Acenei-lhe afirmativamentecom o polegar.
Para ajudar a passar
melhor aquelas horas que ainda faltavam até ao cair da noite, embora estivesse
sozinho, procurei um sítio agradável para jantar, que acabei por encontrar
junto ao cais, onde por sorte ainda tive a oportunidade de ver um dos mais
extraordinários ocasos que até então tinha observado.
À hora marcada parti, tal
como planeado, ao encontro de Manuela.
- Então onde vamos beber o
nosso café? – perguntei.
- Vamos a um local
simpático que tem boa música. Pode ser que se consiga arranjar mesa.
O local simpático era um
famoso pub que se situava na estrada marginal junto à praia e que não
era um sítio desconhecido para mim. Anos antes, por aquelas bandas, era o único
local onde havia música ao vivo. Era ali que eu e alguns amigos nos
encontrávamos e começávamos a beber as primeiras cervejas da noite. Pouco
passava das dez da noite e o movimento no seu interior já era intenso. Com
alguma sorte, lá conseguimos arranjar dois lugares numa mesa que tivemos que
partilhar com outros dois casais que não conhecíamos. Se exceptuássemos a
altura da música que nos obrigava a falar num tom mais elevado que o normal
estava-se bem por ali. Ficámos sentados lado a lado, os nossos corpos
roçavam-se com naturalidade e não nos sentíamos constrangidos. Sempre que
olhava para a cara de Manuela observava-lhe um permanentesorriso, um ar que transbordava simpatia,
alegria e dava um brilho suplementar aos deslumbrantes olhos esverdeados.
- Já conhecias? –
perguntou-me.
- Ui, se estas paredes falassem poderiam contar-te muitas histórias
terríveis sobre mim.
- Costumas vir cá muitas
vezes?
- Sempre que posso. Que
idade tens? – perguntei.
- Vinte e um. E em que
trabalhas? – retorquiu ela.
- Sou jornalista.
- Que fixe (!) – respondeu no momento em que fomos
interrompidos pelo empregado de mesa.
-
Desejam alguma coisa?
- Eu quero um café e uma
água natural sem gás – pediu Manuela.
- Para mim é um café e uma
água com sabor a Irlanda – acrescentei.
O empregado permaneceu
parado à espera que fosse eu a decifrar o que antes tinha dito. Quase me
desmanchei com o esforço que ele fez antes de me perguntar.
- É um uísque que quer?
- Sim, Jameson.
- Ah, pois claro,
irlandês, peço desculpa, ainda tenho pouco tempo disto.
- Na boa, estava a
brincar, mas por favor, não se esqueça que não quero gelo, isso é que já é a
sério.
- Trago já – disse o
empregado virando costas.
Manuela continuava com o
seu belo sorriso estampado no rosto.
- Qualquer dia apanho um
empregado que não gosta de brincadeiras e sou mal atendido.
- Este não faria isso –
disse Manuela a rir.
- Olha, não vás julgar que
é atrevimento mas não consigo evitar dizer que tens um sorriso lindo – atirei
de rompante. - Aliás, não é só o sorriso, tu és linda e os teus olhos
deixaram-me alucinado desde que os vi ontem pela primeira vez.
Manuela baixou por
segundos o olhar para a mesa não disfarçando um ligeiro tom avermelhado que lhe
pintou a face. Foi a minha vez de soltar o riso.
- Não é preciso corar. Não
terá sido a primeira vez que te disseram isso.
- Podes ter a certeza que
foi a primeira vez que me disseram assim, olhos nos olhos, tão inesperadamente.
- Não fiques envergonhada,
não vale a pena, foi apenas um elogio sincero à tua beleza.
Manuela sorriu e serenou.
Instantes depois chamou-me a atenção para a música que estava a tocar.
- Só se ouve isto este
Verão.
Fiquei quieto por instantes
à procura da concentração que precisava para tentar perceber no meio de tantas
vozes misturadas qual a música a que se referia. Alguém gritava qualquer coisa
como everything’s gonna be all right, rockabye, rockabye, parecia não
passar do mesmo. Se aquela era a música forte do Verão fiquei com a sensação
que estava desactualizado e por isso respondi a Manuela com uma careta que
demostrava a minha ignorância.
- Acho que nunca prestei
atenção a isto.
- A sério? Não acredito. É
o Shawn Mullins. Isto toca nas rádios a todas as horas.
- Pois, mas com o tempo
fui perdendo o hábito de ouvir rádio até porque as músicas que gosto de ouvir
já não tocam há muito tempo.
- Que músicas? – perguntou
ela com curiosidade.
- Coisas dos Supertramp,
Pink Floyd, Doors, Genesis, Rolling Stones, Led Zeppelin, Deep Purple, Van
Halen, Jethro Tull, Bob Dylan, Tom Waits, Yes, The Who e por aí adiante,
poderia ficar aqui uma hora a dizer nomes que talvez não te digam nada.
- Eu gosto de saber,
alguns conheço bem, os Doors, por exemplo, até gosto bastante.
- A sério?… Mas que bem,
já não é normal encontrar alguém da tua idade a gostar de Doors. Tem piada, fiz
recentemente um trabalho sobre eles para uma revista.
- Tinham temas fantásticos
e o Jim Morrison é o máximo. O meu pai é louco por ele. Temos os discos todos
lá em casa. O meu pai emigrou pouco depois de eu ter nascido, porque vive do
mar e isto aqui há muito que não dá nada, mas desde sempre, quando vem de
férias, que me habituei a ouvir Doors quase em permanência. Vais achar uma parvoíce
mas ele repete vezes sem conta a história de ter tido em tempos um companheiro
de embarcação de quem se tornou amigo e que lhe fazia lembrar o Jim Morrison.
- Estás a surpreender-me –
disse-lhe no momento em que ouvimos alguém gritar.
- Nela!
Olhámos em simultâneo para
a outra extremidade do pub e
reparámos em duas raparigas que acenaram e começaram a passar por entre um
amontoado de gente vindo ao nosso encontro. Quando se aproximaram,
cumprimentaram-se as três efusivamente como quem não se via há bastante tempo.
- Estás na mesma – dizia
uma - que vais fazer hoje à noite?
- Ainda não sei.
- Fixe – gritou a mesma
rapariga em absoluto histerismo. – Então, vamos curtir em nome dos bons velhos
tempos. Já viste por aí o resto da malta?
- Alguns – respondeu
Manuela trocando comigo um olhar discreto como se estivesse a pedir desculpa
pelo que se estava a passar.
- O que é que está dar por
aqui? – insistia a eléctrica amiga não dando tempo para qualquer resposta de
Manuela. – O costume, não é? É por isso que a gente curte tanto isto. - E
soltou uma gargalhada que ecoou mais alto que a música que tocava no pub.
Manuela olhou outra vez
para mim e eu percebi que o nosso encontro tinha chegado ao fim.
- A sério que não ficas
chateado? – perguntou-me.
- Claro que não. Pode ser
que nos encontremos por aí ainda esta noite.
Com alguns encontrões e
ligeiros tropeções lá consegui chegar à porta de saída. Olhei para o relógio e
reparei que não tinha estado muito tempo no interior do pub, ainda eram dez e meia. Resolvi andar em direcção ao carro sem
ter bem a certeza do que iria fazer a seguir. Inesperadamente e com alguma
estranheza, quando me sentei ao volante e dei à chave, senti uma enorme vontade
de regressar ao bar do António.