quarta-feira, 6 de julho de 2016

Epílogo


“Quando as portas da percepção forem purificadas os homens verão as coisas como elas realmente são: infinitas.”



Aldous Leonard Huxley




Epílogo






“O Mundo não passa de um filme

que os homens imaginam.”



Após aquela última frase levantou-se, virou-me as costas, afastou-se e voltou a ocupar o mesmo lugar onde o tinha visto pela primeira vez na noite anterior. Percebo-o a chorar, de dor, aquele choro mudo que não se vê, que apenas se sente.

Não tive coragem para voltar a importuná-lo. Olhei para o relógio e reparei que já eram quase duas da manhã. Ocorreu-me que estava na hora ir andando. De repente, apeteceu-me regressar rapidamente a Lisboa para reflectir e escrever sobre aquela noite. Embora quisesse despedir-me do António não sabia se ele ainda estaria para demorar. Resolvi levantar-me e de caminho para a saída ainda me passou pela cabeça que tudo aquilo que tinha acabado de ouvir talvez tivesse sido um sonho, um delírio. Mas rapidamente senti que estava bem acordado quando um vento gélido me trespassou a face assim que abri a porta que dava para a rua.

Encaminhei-me para o carro quando fiquei momentaneamente cego devido aos faróis de um veículo que se aproximava naquele momento.

Percebi que era o António que após estacionar se dirigiu a mim.

- Desculpa a minha demora mas o que se passou foi uma coisa muito chata. A família do meu amigo está de rastos. A miúda dele, a Manuela, está uma lástima, nem quer acreditar no que aconteceu. Estas situações são tramadas. Tive que lá ficar um bocado, entendes?.

- Claro, António, só estava preocupado porque não queria ir embora sem pagar o que bebi e olhe que quase rebentei com outra garrafa.

- Não te preocupes com isso, rapaz, vai com cuidado para baixo e aparece sempre que quiseres.

António entrou e ouvi-o perfeitamente a trancar a porta do bar quando dei conta que não tinha comigo as chaves do carro.

Dei meia volta e chamei-o. Ele não demorou muito a reabri-la.

- Esqueceste alguma coisa? – perguntou-me.

- Devo ter deixado as chaves do carro em cima do balcão.

- Vai lá ver.

As chaves do carro não foram difíceis de encontrar. Estavam ao lado do bloco de notas em cima do balcão no sítio onde as tinha largado à chegada. Mas não pude deixar de reparar que não estava mais ninguém no interior do bar, pelo menos que eu conseguisse ver.

- O seu amigo já se foi deitar? – perguntei ao António enquanto ele estava já a limpar o balcão com um pano.

- Qual amigo?

- Aquele que estava aqui quando eu cheguei.

- Mas não estava cá ninguém dentro – disse-me.

Fiquei confuso naquele momento e sem saber se o António estava a reinar comigo até que me lembrei do carro a mais estacionado junto a bar e que eu já tinha reparado na noite anterior.

- Então mas de quem é o carro que está ali estacionado?

Assim que fiz aquela pergunta, o António quase me assustou. Levantou os olhos muito abertos de encontro aos meus e a sua altura de dois metros mais o ar carregado que lhe observei fizeram com que me sentisse muito pequeno naquele instante.

Contudo, calma e suavemente, embora nunca desviando de mim o seu penetrante olhar disse-me:

- Aquele carro é de um amigo que eu um dia conheci em Cape Town. Ele veio para aqui antes de mim e eu quando voltei reencontrei-o perdido, à deriva como um barco sem rumo, exactamente da mesma maneira como tinha dado por ele lá uns anos antes. Depois de eu regressar, ele viveu aqui comigo durante algum tempo até que um dia acordei e ele não estava. E a partir daí nunca mais soube nada dele. A única coisa que sei é que não levou nada e o carro ficou exactamente onde o deixou pela última vez.

- Mas o que aconteceu, terá morrido? - perguntei.

- Não creio – respondeu – ele costumava dizer grandes coisas se fazem quando os homens e as montanhas se encontram. Ora, um homem que diz isto não morre nunca, é um poeta e os poetas são eternos. A última noite que passei aqui com ele ouvi-o dizer que ainda continuava à procura das montanhas. E isto aqui, meu caro, é só uma pequena serra.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

As portas ou a morte de um mito (terceira parte)


- Escuta… – disse-me sem sequer olhar para mim, - vou contar-te a história de um rapaz que nasceu em oito de Dezembro de mil novecentos e quarenta e três em Melbourne, na Florida. O pai era um jovem oficial em início de carreira na marinha e apenas seis meses depois do nascimento do filho foi chamado para servir nas forças americanas instaladas no Pacífico de onde só retornou passados dois anos. Durante esse tempo, o rapaz viveu, na companhia da mãe, em casa dos avós paternos, em Clearwater. Eram pessoas conservadoras e submeteram-no nos primeiros anos de vida a uma rígida e metódica educação que foi acrescida pela severa disciplina, quase militar, imposta após o regresso do pai, o que contribuiu para gerar nele um ódio intrínseco a qualquer espécie de autoridade. Ao mesmo tempo, ele foi cultivando uma espécie de isolamento em relação às outras crianças da mesma idade, em parte pela timidez mas, sobretudo, pelas constantes mudanças a que a família foi submetida de acordo com as bases para as quais o pai ia sendo destacado.

Aquela história não me era desconhecida, mas deixei-o prosseguir para tentar perceber onde ele queria chegar.

- Numa idade mais complicada, com catorze anos, o rapaz mudou-se mais uma vez, com a família, para Alameda, depois de ter vivido algum tempo na cidade de Washington e no Novo México. Foi nessa altura, por volta de mil novecentos e cinquenta e sete, apesar de já ter um irmão e uma irmã, que conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro grande amigo - um gorducho com quem gostava de pregar partidas aos outros, coisas próprias da idade, - mas rapidamente essa amizade teve de ser posta de parte porque, passado um ano, a família teve de se mudar novamente para Alexandria numa altura em que o pai voltou a trabalhar no Pentágono. Dessa vez, durante os três anos que permaneceu naquela cidade, viveu o primeiro amor - um namoro tempestuoso, diga-se, pela crueldade das suas brincadeiras e por algumas atitudes estranhas e excessivas. Chegou mesmo a ameaçar, com uma faca, fazer uma cicatriz no rosto da rapariga para que mais ninguém olhasse para ela, excepto ele.

Naquele momento, notando os cigarros que eu mesmo ia apagando no cinzeiro e pelo uísque que nunca deixei de verter para o copo sempre que lhe via o fundo, senti que estava nervoso.

- Também é importante que se diga que aquele rapaz, apesar dos comportamentos intempestivos, era ao mesmo tempo um aluno brilhante no colégio destacando-se frequentemente dos outros da sua idade com excelentes notas. Foi, aliás, por essa altura que começou a frequentar a biblioteca do Congresso e a devorar dezenas de livros dos mais variados autores desde Nietzsche, Rimbaud, Balzac, Cocteau e Molière, entre outros, que passaram a ser praticamente seus familiares. Nessa época, costumava pensar em tornar-se poeta ou escritor de verdade e começou a colaborar com pequenos ensaios escritos para um jornal diário, além de, ocasionalmente, também se dedicar à pintura. Outra forma de expressão que nele começou a despertar paixão foi o blues combinado com as técnicas vocais dos dois cantores que mais admirava à altura, Elvis Presley e Frank Sinatra. Claro que, ao fim de algum tempo e com tantos interesses, o rendimento escolar acabou por cair a pique e foi o próprio que tomou a decisão de abandonar o colégio, só que o pai não gostou nada da ideia e obrigou-o a voltar para a Florida para concluir os estudos.

Para mim que escutava aquele homem já não existiam dúvidas. A história que ele me estava a contar não era desconhecida. Aliás, eu sabia-a de trás para a frente. Mas não ousei interrompê-lo e deixei que prosseguisse.

- Decorria nessa altura o ano de mil novecentos e sessenta e um quando ele voltou a casa dos avós, mas aí foi por pouco tempo já que eles não aguentaram as insolências, os hábitos e até o próprio aspecto do neto. Na verdade, ele também pouco se ralou com isso, aliás, com rapidez tomou a decisão de habitar uma casa com outros colegas. A partir daí começou a estudar sociologia, história, literatura e a dedicar-se ao teatro. Aliás, foi em Clearwater que arranjou uma nova namorada - uma jovem católica, recatada, conquistada precisamente pelo seu estilo diferente de ser. Foi uma altura em que também por já beber demais fez com que, aos poucos, os colegas o fossem abandonando. Ainda assim, com um dos poucos amigos que lhe sobrou, acabou por fazer inúmeras viagens à boleia pelo Texas, Arizona e México. Numa delas, encheu-se de coragem e foi a casa dos pais em San Diego

Pedir autorização para estudar cinema, pensei eu instantaneamente como que adivinhando o que se seguiria.

- … para anunciar que tinha decidido estudar cinema. E a verdade é que apesar de não ser esse o futuro que os pais tinham planeado para si, acabaram, surpreendentemente, por aceitar aquela escolha, muito devido à sua insistência. Decorria o ano de sessenta e quatro quando conseguiu a transferência para a UCLA. Por lá arranjou um restrito grupo de amigos onde se destacavam alguns que, tal como ele, tinham interesses comuns na literatura, na música e no cinema. Durante aquela temporada, escreveu bastantes versos ao mesmo tempo que preparou uma curta metragem a preto e branco para os exames finais. Aquele viria ser o seu primeiro e último filme. O mais curioso é que nem sequer tinha argumento. A explicação do mesmo seria feita pelo caminho. No fundo, o que ele tinha em mente era fazer um filme que interrogasse o próprio processo da sua realização, ou seja, um filme sobre um filme. Chegado o momento da apresentação, o filme acabou por ser desprezado pela maioria dos colegas e professores. E em resultado desse insucesso acabou por desistir do curso, ficando apenas com o bacharelato.

“Voltei a nascer um dia depois de ser enterrado”, ainda era a afirmação que ecoava dentro de mim e embora estivesse atento ao desenrolar daquela história que ele ia contando era aquilo que eu estava à espera de decifrar.

         - Pouco tempo depois, a convite de um amigo, que frequentou o mesmo curso, o rapaz resolveu dedicar-se à música, só que não estava nada preparado para enfrentar aquilo que sucedeu quando, num ápice, os seus textos em forma de canção deram origem a uma inesperada legião de admiradores que começou a adorá-lo como a um Deus, um pouco à imagem do que sucedia com Janis Joplin e Jimi Hendrix. Rapidamente, começou a ser seguido por tudo e por todos e deixou de ter vida própria. A partir daí, começou a verdadeira loucura e a deriva que não o largaram durante anos. A súbita e, acima de tudo, impreparada subida ao mundo das mais cintilantes estrelas conseguiu ultrapassar a sua própria personalidade. Tanta gente à sua volta e sentia-se praticamente isolado em todos os lados. O único ombro que ainda assim fazia com que sentisse algum conforto e segurança era o de uma mulher. Uma mulher que a ele entregou a vida e com quem decidiu partir para uma nova etapa - fugir para recomeçar. E juntos escolheram Paris, bem longe daqueles que lhe exigiam mais do que podia dar.

Naquele instante, aproveitei uma rápida pausa nas palavras daquele homem para de um trago acabar de vez com o uísque que ainda restava na garrafa antes de voltar a fixar os meus olhos nos dele.

- Posso assegurar que a única coisa que o rapaz desejava com afinco era ter uma vida normal. E ser poeta. Escrever com alma. Mas o êxito desmedido que obteve, os contratos por cumprir, os infindáveis espectáculos, o endeusamento de que era alvo sem que se tivesse preparado para tal, as drogas e o álcool que eram, afinal, os únicos refúgios e, por fim, a pressão exercida, devido à sua rebeldia, pelos processos nos tribunais e pelos media não permitiam que isso acontecesse. Foi por isso que, em Paris, acabou por se encontrar consigo mesmo, tornando-se uma espécie de poeta exilado num lugar mágico onde tinha todas as condições para se preocupar apenas com a escrita. E numa primeira fase conseguiu escrever imensa poesia, mas depois voltou a cair no desespero. A partir de certa altura, já completamente dominado pela bebida, escrevia apenas para tentar superar a depressão e transformá-la em algo de criativo mas não conseguia. Aquilo que fazia não valia nada e ele era o primeiro a ter noção disso. Muitas foram as vezes em que se colocou defronte de um espelho, minutos, horas a fio, a olhar fixamente para os seus próprios olhos à procura de respostas. Por fim, encontrando-se quase sem forças para continuar a viver, achou que só havia uma solução, algo que já lhe tinha passado pela cabeça em muitas ocasiões, mas que não merecia a concordância da mulher com quem vivia e que acabava sempre por conseguir demovê-lo dessa louca intenção, talvez por não querer que ele a abandonasse. Só que a partir de certa altura não houve volta a dar. O abismo, o desespero e a dor tornaram-se insuportáveis. Estava na hora de avançar com o plano. A ideia era morrer e renascer de novo, noutro país e noutra cidade com gente que nunca tivesse ouvido falar dele. Sem haver lugar a qualquer possibilidade de retorno. E aí é que residia a principal resistência por parte da namorada. Deixá-lo prosseguir com aquilo seria assinar, no fundo, duas certidões de óbito - a ilusória e a de comprometimento - do homem da sua vida e abdicar para sempre de passar o resto da vida ao lado dele.

Naquela altura achei que estava a ser gozado e quase esbocei um sorriso mas contive-me de modo a não ser indelicado para alguém que pela aparência teria idade para ser meu pai. Depressa desviei o olhar daquele homem enquanto tirei do bolso da camisa outro cigarro que rapidamente acendi com uma muito profunda inspiração a que me forcei.

- Finalmente, por causa do estado em que ele se encontrava por aqueles dias e ao contrário das vezes anteriores, não foi difícil convencê-la e torná-la cúmplice como era seu desejo. É verdade que o cansaço que sentia por toda a situação e o facto dele se encontrar profundamente desesperado, deu-lhe a ela a força e a coragem derradeira para escutar uma vez mais aquele plano arquitectado ainda nos Estados Unidos num daqueles momentos mais conturbados e angustiantes. O êxito que tinha obtido no mundo da música permitia-lhe ter alguns bens que rapidamente passariam para o nome dela e com o dinheiro que lhe restava pagaria a outros cúmplices necessários como, por exemplo, o médico que teria que assinar a certidão de óbito. Muito bem pago, esse médico, que nunca mais poderia voltar a aparecer, trataria de contratar alguém que arranjasse um caixão que deveria ser selado sem fazer perguntas. E no dia em que as coisas estivessem completamente preparadas para acontecer convidariam um amigo comum para ir jantar fora como se estivesse tudo dentro da normalidade mas, obviamente, nada lhe contariam, - a suposta morte iria ocorrer naquela noite e teria mesmo que parecer um acidente - a seguir ia pôr a namorada a casa e ainda na presença do amigo anunciaria que ia ao cinema, pelo que só voltaria quando ela já estivesse a dormir. Ela iria dar por falta dele por volta das quatro horas da manhã e depois só tinha que chamar o médico com quem tinham tudo combinado, o caixão seria de imediato selado apenas com uns livros lá dentro e, entretanto, àquela hora, ele já estaria metido dentro de um avião a caminho da África do Sul.

Naquele instante, embora me esforçasse por isso, eu já não conseguia conter uma certa inquietação corporal e até o isqueiro que tinha preparado para acender mais um cigarro escorregou por entre as minhas mãos como se elas estivessem barradas com manteiga. Apanhei-o do chão e aproveitei o facto de me ter levantado para ir ao lado de dentro do bar buscar outra garrafa de uísque. Quando voltei ao meu lugar passei os olhos pelas várias fotografias espalhadas pelas paredes e senti um arrepio que me gelou. Definitivamente, mais interessado agora que antes, voltei a sentar-me no mesmo sítio à espera que ele continuasse a contar aquela história.

- Era uma sexta-feira, dia dois de Julho de mil novecentos e setenta e um. O rapaz, a namorada e o tal amigo jantaram então, num café de Paris ao ar livre, não muito distante do apartamento onde viviam. Durante o tempo que durou aquela refeição, ele permaneceu invulgarmente sossegado e isso, para quem o conhecia bem, não era nada normal, mas depois do jantar, para não levantar qualquer suspeita, decidiu enviar um telegrama ao seu editor para que fosse substituída, de um livro que estava prestes a ser publicado, a sua fotografia que deveria ser trocada por outra que considerava mais poética e onde estava de barbas. A seguir, tal como estava planeado, levou a namorada a casa, despediu-se dela com poucas palavras e às onze da noite levantou voo num avião da Air France com destino a Cape Town onde aterrou apenas no domingo. E nunca mais ninguém teve notícias dele. A namorada, única pessoa que podia contar a quem quisesse o que verdadeiramente se tinha passado, cumpriu a promessa que tinha feito e nunca disse nada a ninguém. Entregou-se a uma vida de quase reclusão e acabou por morrer três anos depois, curiosamente, no dia vinte cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro.

- Que data, esse dia é histórico em Portugal – deixei escapar sem querer.

- Eu sei, recordo-me bem, enquanto os portugueses estavam a receber notícias de uma revolução que estava a acontecer em Portugal, eu ouvi num noticiário da televisão local a notícia da morte daquela mulher que me permitiu ganhar uma vida nova.

Naquela altura eu já tinha umas quantas perguntas que gostaria de fazer e que me inquietavam mas não sabia se deveria. É que pela primeira vez, ao ter falado na primeira pessoa, aquele homem tinha-se revelado. Tentei em vão ficar em silêncio.

- Posso fazer uma pergunta? – perguntei pausadamente.

Ele ficou a olhar-me em silêncio e eu prossegui:

- Quando chegou à África do Sul procurou saber como se tinham desenrolado as coisas em Paris, se tudo tinha corrido como planeado?

- Não estava em condições de o fazer. Quando cheguei a Cape Town andei perdido durante uns dias. Não levei muito dinheiro e o pouco que tinha rapidamente acabou. Por mero acaso, acabei por ouvir sem querer no dia oito de Julho uma notícia rápida sobre o meu próprio funeral e mais nada. Isso para mim foi um sinal de que tudo tinha corrido bem, pelo menos foi o que pensei. Senti-me verdadeiramente aliviado, livre como nunca. Nessa noite, pela primeira vez em muitos anos, adormeci feliz num cais junto ao mar e quando acordei sabia que tinha uma vida nova para ser vivida. E um amigo para sempre.

- O António? – intrometi-me.

- Sim, foi ele que me despertou naquela manhã. Disse-me qualquer coisa que não entendi e como fiquei simplesmente a olhá-lo, sem dar resposta, esticou-me os braços, ajudou-me a levantar e levou-me quase em ombros para a sua casa. Eu estava exausto, esfomeado e com a roupa toda rasgada. O António lavou-me, deu-me de comer e ofereceu-me a roupa dele. Cuidou de mim como se eu fosse um bebé e durante quinze dias eu não fui capaz de abrir a boca para dizer, sequer, obrigado. E ele nunca forçou nada, nem mesmo nas vezes em que o via mais preocupado e tentado a perguntar qualquer coisa para tentar perceber quem eu era e o que fazia ali. Durante aquele tempo observei-o em silêncio todas as madrugadas quando ele saía para o trabalho e não houve uma única vez em que ele tivesse saído sem me perguntar antes se eu precisava de alguma coisa. Como nunca lhe respondia ele partia do princípio que eu não precisava de nada. Mas um dia surpreendi-o. Ficou estupefacto a olhar para mim quando lhe respondi que queria acompanhá-lo. Sorriu e a única coisa que me disse foi que se quisesse continuar a ser seu amigo e a viver lá em casa teria que aprender a falar português.

- Mas nem mais tarde, depois de algum tempo juntos, o António lhe perguntou sobre o seu passado?

- Tenho quase a certeza que o António sempre pensou que eu devia ser africânder. O meu passado nunca lhe interessou. O António é um homem culto, inteligente, com uma vida dedicada ao trabalho e aos amigos que tratou sempre como se fossem a sua verdadeira família. Comigo, terá pensado que se eu quisesse contar alguma coisa sobre o meu passado tinha que ser eu a tomar a iniciativa mas como nunca abri a boca sobre o assunto ele também nunca me perguntou nada.

- Eram ambos muito novos quando se conheceram.

- É verdade, eu tinha vinte sete anos e o António apenas mais um. Contudo, ele já lá estava há dez anos e o facto de ser português foi importante para que não me tivesse reconhecido.

- Mas nunca mais voltou a pensar, por momento algum, no que tinha deixado para trás?

- Não, porque, na verdade, eu não tinha feito rigorosamente nada para conquistar o que tinha largado. No fundo, nunca senti que tivesse perdido coisa alguma. O que deixei para trás foi uma sociedade sem escrúpulos, hipócrita e manipuladora que sem darmos conta começa a dominar as nossas vidas levando-nos a fazer não o que queremos mas o que quer que façamos. E, ali, em Cape Town eu consegui respirar e sentir paixão pela vida, sensação de espaço e aprendi algo que desconhecia, ser tolerante, aprendi a confiar, a partilhar e a amar.

- Apaixonou-se?

- Sim, por uma portuguesa. Por isso vim aqui parar. Fiquei em Cape Town nove anos e durante esse tempo trabalhei e convivi com o António e com os outros portugueses que por lá estavam e, entre eles, conheci a mulher com quem acabei por casar. No princípio dos anos oitenta a situação política na África do Sul começou a ficar muito complicada por causa dos conflitos raciais, sobretudo, no Soweto, e os protestos violentos contra o apartheid tornaram-se nessa altura frequentes. O assassinato de Steve Biko agudizou ainda mais as coisas. Aí, os pais da minha mulher tiveram receio de que acontecesse, por lá, o que já tinha acontecido em Angola. Por isso, resolveram fazer as malas e regressar. E eu decidi vir com eles.

- Aqui para São Martinho do Porto?

- Tornada.

- Eu sei onde é – disse-lhe de imediato. – Mas, nestes últimos vinte anos, sendo a escrita a sua grande paixão, nunca mais voltou a escrever?

- Nem uma linha. A vida nova que procurei e que acabei por encontrar não podia de forma alguma cruzar-se com aquela que eu anteriormente desprezava.

- E que fez durante todo este tempo?

- Tive uma vida normal e real, trabalhei, construí uma casa de raiz, cultivei amigos, dei um verdadeiro valor à vida, à minha e à dos outros e fui feliz durante algum tempo, mas, claro, por absurdo que possa parecer sempre senti que a felicidade não duraria para sempre e já imaginava que, mais tarde ou mais cedo, depois de ter pregado uma partida à vida e de me ter sido dada uma segunda chance ela um dia vingar-se-ia trazendo-me numa bandeja a maior das dores que um ser humano pode sentir.

- Como assim?

- Curiosamente, fez ontem dez anos, exactamente dezoito depois do enterro de Paris. Com o passado completamente apagado, para mim aquele já era um dia igual a tantos outros e que me passaria despercebido não fosse o que sucedeu. Como todas as manhãs, à mesma hora, a minha mulher passava a estrada para conseguir chegar a casa da mãe que estava há anos acamada. Quis o destino que naquele dia se tivesse cruzado com um camionista que já carregava muitas horas de estrada sem descanso, vindo de Estocolmo e que não tinha pregado olho naquela noite. Eu seguia ligeiramente atrás e tive um mau pressentimento, ainda gritei mas ela não me ouviu. O semáforo estava vermelho, ele não parou e depois foi tudo muito rápido, a minha mulher não se apercebeu… estava grávida de oito meses.

Todo aquele relato parecia ainda muito presente na cara bastante pálida daquele homem. Eu próprio senti naquele momento o embate de um monte de sucata em cima do corpo e um aperto maior no estômago quando vi uma lágrima a escorrer-lhe pela face.

- Muito mais tarde, só quando o António regressou da África do Sul e depois de muito insistir é que senti coragem para sair de casa mas a vontade de recomeçar outra vez já não existia em mim. Definitivamente, tudo à minha volta esmoreceu. O Mundo não passa de um filme que os homens imaginam.

                                                                                     (continua)

quinta-feira, 23 de junho de 2016

As portas ou a morte de um mito (segunda parte)


Estava tão empenhado e concentrado a tentar recordar onde é que já tinha visto aquela figura que apanhei um susto que me fez entornar o copo de uísque no momento em que ouvi uma voz mesmo ao meu lado a perguntar:

- Que estás aqui a fazer?

A restabelecer-me daquela inesperada situação e ao mesmo tempo a limpar com um guardanapo de papel o líquido que tinha saltado do copo para cima do balcão apenas consegui balbuciar:

- Estou só a beber um copo. O António teve que sair por momentos, disse-me para entrar e esperar. Já estive aqui ontem.

- Eu sei, tenho olhos na cara, vi-te sair – disse-me.

Naquele instante percebi que, embora mais velho, aquele era o homem que estava na maior parte das fotografias ao lado do António. Magro, muito magro e, certamente, mais baixo do que eu, com o cabelo completamente grisalho, um olhar intenso, marcante, triste, misterioso, quase intimidante e uma voz forte e ao mesmo tempo arrebatadora.

- O que fazes? – perguntou-me enquanto se sentou ao meu lado.

- Como assim?

- Qual é o teu trabalho?

- Bem, sou jornalista, escrevo umas coisas.

Riu-se e eu não percebi o motivo.

- Qual é graça?

- Desculpa – respondeu – não me ri de ti. A verdade é que estou à tua espera há muito tempo. Tinha a certeza que num dia assim irias aparecer.

- Isso quer dizer exactamente o quê? – perguntei ligeiramente assustado.

- É que hoje eu faço anos, mas em vez de receber sou eu que quero dar algo.

- A mim?

- Sim, quero dar-te uma história. No fim fazes o que quiseres. Podes revelá-la ou não, que é lá contigo, mas desde já te garanto que, embora seja verdade tudo o que te vou contar, não será fácil fazeres com que as pessoas acreditem.

Naquele momento ainda não tinha conseguido perceber se aquele homem estava no seu estado normal ou se já tinha bebido uns copos, mas satisfazia-me o facto de saber que tinha com que me entreter até o António regressar.

- Como te disse, hoje, nove de Julho… faço vinte e oito anos.

Fiquei imóvel, apenas a observar o movimento dos seus olhos e à espera que ele acrescentasse alguma coisa que me fizesse entender o que tinha acabado de dizer.

- Deves achar estranho isto mas na verdade eu voltei a nascer um dia depois de ser enterrado.

Devem ter passado apenas alguns segundos mas o silêncio que se seguiu àquela revelação pareceu-me uma eternidade. Quase sem respirar, acendi outro cigarro e enchi novamente o copo com uísque. Tentava ainda ordenar as ideias quando voltei a escutar aquela voz, ligeiramente enrouquecida, ao mesmo tempo firme, segura e sem hesitações.

- Queres ouvir a história?

- Claro – respondi.

Ali ao lado, aquele homem, que para mim ainda não tinha nome, desviou os olhos dos meus, fixou-os em qualquer coisa indefinida e depois de, em cima do balcão, unir as mãos com os dedos cruzados foi dizendo:

 - As pessoas criam as suas próprias verdades e, mesmo que não tenham a certeza de coisa alguma, a maior parte das vezes não querem saber o que é mesmo verdade e, nada, nem mesmo na dúvida, as faz mudar de opinião. Sabes, há coisas que sabemos e há coisas desconhecidas, e entre elas, existem as portas. Mas a maioria não está preparada para abri-las e, assim, essas supostas verdades podem até não passar na realidade de mentiras mas elas nem dão conta disso e acabam mesmo sem se aperceberem por alimentá-las e viver assim para o resto das suas vidas.

- Isso lembra-me qualquer coisa que já terei lido – disse-lhe.

                                                                                            (continua)



segunda-feira, 20 de junho de 2016

As portas ou a morte de um mito (primeira parte)


Quando me aproximei da entrada do pequeno bar, exceptuando a ausência de nevoeiro, tudo me pareceu exactamente na mesma como na véspera. Ainda hesitei por momentos. Ocorreu-me que poderia ser um abuso da minha parte dirigir-me ali mais uma vez sozinho. Afinal, aquele espaço era, acima de tudo, a casa do António. O barulho que vinha do interior era também o mesmo mas desta vez eu já sabia que era apenas da televisão – corridas de cavalos, quase de certeza.

Quando, finalmente, decidi que devia bater à porta acabei surpreendido com a sua brusca abertura e com a presença de rompante do António que me assustou e fez com que perdesse o contacto com o chão.

- Ah, és tu! Gostaste de cá estar, hein? – vociferou aceleradamente.

- Não quero incomodar – respondi.

- Que conversa é essa? Para gente amiga esta casa está sempre aberta – atirou em três tempos – só que eu tenho que ir lá abaixo a São Martinho do Porto para falar com uma pessoa.

- Mas está tudo bem? – perguntei depois de perceber uma expressão carregada e de preocupação no rosto do António.

- Nem por isso. Aconteceu uma coisa estúpida. Estava ali nas calmas a ler o jornal, tocou o telefone e deram-me a notícia de dois tipos com quem trabalhei que morreram… uma merda, pá... Dois homens bons. Um era daqui, a miúda dele trabalha ali… tenho que ir lá abaixo falar com a família.

- Quer que vá consigo?

- Obrigado, não vale a pena, eu vou lá num instante, deixa-te ficar por aqui. Vieste beber um copo e é isso que vais fazer. A casa é tua, aliás, a garrafa que ontem não despejaste ainda está no mesmo sítio… e o copo também. Por isso, serve-te, que eu não demoro – atirou visivelmente nervoso.

Resolvi entrar depois de ver desaparecer o seu carro em grande velocidade no meio daquela escuridão da serra. Fechei a porta e, imediatamente, percebi que no mesmo banco, na mesma posição e a ver exactamente a mesma programação televisiva, estava o sujeito da noite anterior. Estranhei que o António não tivesse mencionado o facto de estar outra pessoa naquele espaço, mas não me preocupei muito por isso. Larguei as chaves do carro em cima do balcão ao lado de uma espécie de bloco de notas que se encontrava aberto e onde era possível observar alguns rabiscos. Disse boa-noite mas talvez por causa do barulho que saía do televisor não ouvi resposta alguma.

Ao sentar-me consegui ler o que estava escrito naqueles apontamentos. Eram palavras soltas: pescadores portugueses… um madeirense… afogados ao largo do Cabo… acidente… António de Jesus Castro… São Martinho do Porto… dono da embarcação… João Olegário Tomás… Paul do Mar… Slangkop/Scarborough… uma semana… decorrem buscas… seis mortos… Ao ler aquelas anotações soltas recordei-me do que António me tinha contado sobre os muitos momentos de terror passados em alto mar. Livrou-se de boa, pensei. Afastei um pouco o bloco e reparei, tal como tinha dito, que ali estavam em cima do balcão o copo que eu tinha usado e a mesma garrafa de uísque. Precisamente no mesmo sítio. Servi-me. Acendi um cigarro. Tentei distrair-me a olhar para a televisão, para aquelas corridas de cavalos que mais pareciam não ter fim mas cansei-me depressa e optei por me perder a observar detalhadamente as muitas fotografias que estavam penduradas na parte interior do balcão e que coabitavam com as garrafas nas prateleiras. Em todas estava o António, bastante mais novo, sempre acompanhado por outros homens. Curiosamente, reparei que era sempre o mesmo que se apresentava ao seu lado em todas as fotografias. Talvez um grande amigo, pensei.

Ao fitar com redobrada atenção a cara daquele parceiro do António senti algo de estranho. De repente, pareceu-me alguém que eu conhecia, não me lembrava era de onde.

                                                                                                  (continua)

quarta-feira, 8 de junho de 2016

fx. 11 – five to one


Cinco para um / Um em cinco



            Podem admirar.

            A minha carne é verdadeira.

            As minhas mãos – como se movem

            harmónicas como ágeis demónios

            O meu cabelo – tão preso & encaracolado

            A pele do meu rosto – apertem as bochechas

            A minha língua de espada em chamas

            disparando pirilampos verbais

            Sou real.

            Sou humano

            Mas não sou um homem vulgar

            Não Não Não



Ninguém sai daqui vivo, agora / Tu levas os teus, eu vou levar os meus / Vamos conseguir, se tentarmos



            - salvar uma alma já

               arruinada. Alcançar o sossego.

               Saquear ouro verde

               num ataque pirata & viver

               de novo a glória de outrora.



Todos nós envelhecemos e os jovens se fortalecem / Pode levar uma semana e pode levar mais tempo



            A França é a 1.ª, os homens de Nogales

            atravessam a fronteira –

            terra de eterna adolescência

            de desespero sem par

            em qualquer lugar do perímetro

            Mensagem das imediações

            chamando-nos para casa

            Este é o lugar privado de uma

            nova ordem. Precisamos de salvadores

            Que nos ajudem a sobreviver à viagem.

            Quem virá agora?

            Ora escutem

            Começámos a travessia

            Quem sabe? pode acabar mal



Eles têm as armas mas nós temos a maioria / Vamos vencer, sim, estamos a dominar



            Bem, vou contar-vos uma história de whiskey,

                        mística & homens

            De crentes, & como

                        tudo começou



            Primeiro havia mulheres & crianças que obedeciam

                                                                                                                      à lua

            Depois a luz do dia trouxe saber & febre

                                               & doença muito cedo



            Podes tentar lembrar-me

                        em vez do outro

                                                                       podes



            Podes ajudar-me a perceber

                        Que a nossa autoridade é insegura



Os teus dias de festa acabaram / A noite está a chegar



         Tenho de deixar esta ilha,

            Debatendo-me para nascer

            das trevas.



Sombras da noite rastejam durante anos / Tu andas pelo chão com uma flor no cabelo / Tentando dizer que ninguém entende / A trocar as horas por um punhado de moedas



            Pela minha respiração sei do

            que falo & o que vi

            precisa de ser contado.



Vamos conseguir, estamos no nosso melhor / Vamos juntar-nos uma vez mais



         Olhando para trás

                        para a minha vida

                        assaltam-me a memória postais

                                               ilustrados

            Fotografias danificadas



                        cartazes desaparecidos

            De um tempo que não posso fazer regressar



Vamos juntar-nos uma vez mais / Vamos juntar-nos, precisamos, vamos juntar-nos



            lamento as noites perdidas

                        & os anos perdidos

            mandei tudo à merda









            Fim c/ um adeus amigável

            & planos para o futuro

            - Não um actor

                        Escritor-realizador



            Qual das minhas prisões

                        será lembrada

                                                                                                (continua)

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Manuela


Daniel deixou-me sozinho por volta das sete da tarde. Entrava, de novo, ao serviço daí a uma hora e tinha que passar por casa. Durante aquele tempo em que estivemos juntos tentou vezes sem conta que lhe falasse da noite anterior. Por entre palavras, risos, cervejas, tremoços e duas bifanas, ainda acabou por me deixar mais curioso quando abordámos a situação estranha que passei no bar que tinha recomendado e ele me falou das histórias insólitas e até assustadoras envolvendo fantasmas, espíritos, feitiçaria e magia negra que António às vezes contava do tempo que tinha vivido em África. Acrescentou também que, por vezes, um ou outro amigo com quem tinha trabalhado por lá o vinha visitar e nesse caso poderia muito bem ser um deles.

Depois de Daniel se afastar permaneci mais algum tempo por ali sozinho com os meus pensamentos na esplanada mais central de São Martinho do Porto. Até que reparei em Manuela, que se encontrava à porta da albergaria e lembrei-me naquele instante que lhe tinha ganho uma aposta e ela me devia um café. Sorri-lhe de longe quando dei conta que me tinha visto e até fiquei surpreendido quando a vi rir com as duas mãos no ar e os dedos completamente abertos como que a avisar que só estaria disponível às dez horas. Acenei-lhe afirmativamente  com o polegar.

Para ajudar a passar melhor aquelas horas que ainda faltavam até ao cair da noite, embora estivesse sozinho, procurei um sítio agradável para jantar, que acabei por encontrar junto ao cais, onde por sorte ainda tive a oportunidade de ver um dos mais extraordinários ocasos que até então tinha observado.

À hora marcada parti, tal como planeado, ao encontro de Manuela.

- Então onde vamos beber o nosso café? – perguntei.

- Vamos a um local simpático que tem boa música. Pode ser que se consiga arranjar mesa.

O local simpático era um famoso pub que se situava na estrada marginal junto à praia e que não era um sítio desconhecido para mim. Anos antes, por aquelas bandas, era o único local onde havia música ao vivo. Era ali que eu e alguns amigos nos encontrávamos e começávamos a beber as primeiras cervejas da noite. Pouco passava das dez da noite e o movimento no seu interior já era intenso. Com alguma sorte, lá conseguimos arranjar dois lugares numa mesa que tivemos que partilhar com outros dois casais que não conhecíamos. Se exceptuássemos a altura da música que nos obrigava a falar num tom mais elevado que o normal estava-se bem por ali. Ficámos sentados lado a lado, os nossos corpos roçavam-se com naturalidade e não nos sentíamos constrangidos. Sempre que olhava para a cara de Manuela observava-lhe um permanente  sorriso, um ar que transbordava simpatia, alegria e dava um brilho suplementar aos deslumbrantes olhos esverdeados.

- Já conhecias? – perguntou-me.

- Ui, se estas paredes falassem poderiam contar-te muitas histórias terríveis sobre mim.

- Costumas vir cá muitas vezes?

- Sempre que posso. Que idade tens? – perguntei.

- Vinte e um. E em que trabalhas? – retorquiu ela.

- Sou jornalista.

- Que fixe (!) – respondeu no momento em que fomos interrompidos pelo empregado de mesa.

         - Desejam alguma coisa?

- Eu quero um café e uma água natural sem gás – pediu Manuela.

- Para mim é um café e uma água com sabor a Irlanda – acrescentei.

O empregado permaneceu parado à espera que fosse eu a decifrar o que antes tinha dito. Quase me desmanchei com o esforço que ele fez antes de me perguntar.

- É um uísque que quer?

- Sim, Jameson.

- Ah, pois claro, irlandês, peço desculpa, ainda tenho pouco tempo disto.

- Na boa, estava a brincar, mas por favor, não se esqueça que não quero gelo, isso é que já é a sério.

- Trago já – disse o empregado virando costas.

Manuela continuava com o seu belo sorriso estampado no rosto.

- Qualquer dia apanho um empregado que não gosta de brincadeiras e sou mal atendido.

- Este não faria isso – disse Manuela a rir.

- Olha, não vás julgar que é atrevimento mas não consigo evitar dizer que tens um sorriso lindo – atirei de rompante. - Aliás, não é só o sorriso, tu és linda e os teus olhos deixaram-me alucinado desde que os vi ontem pela primeira vez.

Manuela baixou por segundos o olhar para a mesa não disfarçando um ligeiro tom avermelhado que lhe pintou a face. Foi a minha vez de soltar o riso.

- Não é preciso corar. Não terá sido a primeira vez que te disseram isso.

- Podes ter a certeza que foi a primeira vez que me disseram assim, olhos nos olhos, tão inesperadamente.

- Não fiques envergonhada, não vale a pena, foi apenas um elogio sincero à tua beleza.

Manuela sorriu e serenou. Instantes depois chamou-me a atenção para a música que estava a tocar.

- Só se ouve isto este Verão.

Fiquei quieto por instantes à procura da concentração que precisava para tentar perceber no meio de tantas vozes misturadas qual a música a que se referia. Alguém gritava qualquer coisa como everything’s gonna be all right, rockabye, rockabye, parecia não passar do mesmo. Se aquela era a música forte do Verão fiquei com a sensação que estava desactualizado e por isso respondi a Manuela com uma careta que demostrava a minha ignorância.

- Acho que nunca prestei atenção a isto.

- A sério? Não acredito. É o Shawn Mullins. Isto toca nas rádios a todas as horas.

- Pois, mas com o tempo fui perdendo o hábito de ouvir rádio até porque as músicas que gosto de ouvir já não tocam há muito tempo.

- Que músicas? – perguntou ela com curiosidade.

- Coisas dos Supertramp, Pink Floyd, Doors, Genesis, Rolling Stones, Led Zeppelin, Deep Purple, Van Halen, Jethro Tull, Bob Dylan, Tom Waits, Yes, The Who e por aí adiante, poderia ficar aqui uma hora a dizer nomes que talvez não te digam nada.

- Eu gosto de saber, alguns conheço bem, os Doors, por exemplo, até gosto bastante.

- A sério?… Mas que bem, já não é normal encontrar alguém da tua idade a gostar de Doors. Tem piada, fiz recentemente um trabalho sobre eles para uma revista.

- Tinham temas fantásticos e o Jim Morrison é o máximo. O meu pai é louco por ele. Temos os discos todos lá em casa. O meu pai emigrou pouco depois de eu ter nascido, porque vive do mar e isto aqui há muito que não dá nada, mas desde sempre, quando vem de férias, que me habituei a ouvir Doors quase em permanência. Vais achar uma parvoíce mas ele repete vezes sem conta a história de ter tido em tempos um companheiro de embarcação de quem se tornou amigo e que lhe fazia lembrar o Jim Morrison.

- Estás a surpreender-me – disse-lhe no momento em que ouvimos alguém gritar.

- Nela!

Olhámos em simultâneo para a outra extremidade do pub e reparámos em duas raparigas que acenaram e começaram a passar por entre um amontoado de gente vindo ao nosso encontro. Quando se aproximaram, cumprimentaram-se as três efusivamente como quem não se via há bastante tempo.

- Estás na mesma – dizia uma - que vais fazer hoje à noite?

- Ainda não sei.

- Fixe – gritou a mesma rapariga em absoluto histerismo. – Então, vamos curtir em nome dos bons velhos tempos. Já viste por aí o resto da malta?

- Alguns – respondeu Manuela trocando comigo um olhar discreto como se estivesse a pedir desculpa pelo que se estava a passar.

- O que é que está dar por aqui? – insistia a eléctrica amiga não dando tempo para qualquer resposta de Manuela. – O costume, não é? É por isso que a gente curte tanto isto. - E soltou uma gargalhada que ecoou mais alto que a música que tocava no pub.

Manuela olhou outra vez para mim e eu percebi que o nosso encontro tinha chegado ao fim.

- A sério que não ficas chateado? – perguntou-me.

- Claro que não. Pode ser que nos encontremos por aí ainda esta noite.

Com alguns encontrões e ligeiros tropeções lá consegui chegar à porta de saída. Olhei para o relógio e reparei que não tinha estado muito tempo no interior do pub, ainda eram dez e meia. Resolvi andar em direcção ao carro sem ter bem a certeza do que iria fazer a seguir. Inesperadamente e com alguma estranheza, quando me sentei ao volante e dei à chave, senti uma enorme vontade de regressar ao bar do António.

                                                           (continua)