quinta-feira, 28 de abril de 2016

Alguns meses antes do fim do milénio (primeira parte)


         Raios a partam. Não estou mais para a aturar. Não fala e não me ouve. Que se lixe(!) ela e os que lhe enchem a cabeça. Sempre lhe disse que aquilo que tinha era aquilo que via. Nunca lhe prometi nada. Mas assim não dá mais.

         Um princípio de noite escaldante.

         - Nunca mais me pões a vista em cima – gritei ao mesmo tempo que peguei nas chaves do carro que estavam em cima da pequena mesa junto à entrada. - Não te preocupes com o sítio onde vou dormir e nem sequer precisas de mudar a fechadura, virei cá buscar as minhas coisas quando quiseres.

         E saí batendo com a porta de tal maneira que muitos dos vizinhos do prédio que estariam a jantar naquela altura ter-se-ão engasgado com o susto.

         O desnorte com que abandonei o apartamento que partilhei durante dois anos e meio com Anabela fez-me dar duas voltas ao quarteirão à procura do carro. Tinha-o estacionado poucas horas antes e já não me lembrava onde. Era sempre assim qualquer que fosse o dia da semana ali por aquelas bandas do Bairro Alto.

         Finalmente, depois de uma meia dúzia de voltas, alguns abrandamentos de passada para ordenar as ideias e a memória, lá dei com o Éfe Dido (nome íntimo que lhe atribuí pelo facto das letras de matrícula serem FD) numa íngreme travessa entre dois carros que o tinham entalado de maneira absurda. Ainda me passou pela cabeça que só com a ajuda de um guindaste conseguiria tirá-lo dali sem amolgar os pára-choques.

         O esforço da manobra que fui obrigado a efectuar acabou por me fazer esquecer por momentos a raiva que sentia e o que me tinha levado a sair de casa no momento em que me ia sentar à mesa para jantar. Mas foi uma raiva contida por muito pouco tempo. Ao passar frente à porta do prédio de Anabela ainda me dei ao trabalho de abrir rapidamente o vidro do carro para gritar:

         Bardamerda – como se ela me ouvisse.

Quase sem querer dei comigo na calçada de Carriche a caminho da A8, na direcção de São Martinho do Porto.

         A discussão com Anabela tinha começado precisamente por lhe ter dito que queria ir sozinho passar uns dias a São Martinho do Porto para assentar ideias sobre o futuro da nossa relação. Andávamos com falta de paciência e cansados e até já tínhamos conversado sobre a possibilidade de um afastamento ainda que fosse por pouco tempo. Só que para Anabela esse período de hibernação tinha de ser na mesma cidade.

         E a discussão ficou para lá de feia quando ela me atirou com o cinzeiro, repleto de pontas de cigarro, para cima dos pés e vociferou:

         – Vai mas não voltes.

         Há dois ou três meses que as coisas tinham começado a ficar estranhas. Na verdade, Anabela nunca compreendeu que o meu trabalho de freelancer não tinha horas, folgas, fins-de-semana e nem sequer feriados. Nos primeiros dois anos de relação escondeu e conteve o stress que tal modus vivendi lhe causava e foi acumulando dias, meses de frustração e de isolamento, até que a partir de certa altura começou a embirrar por tudo e por nada sempre que lhe dizia não saber bem a que horas iria chegar a casa. Às vezes, quando voltaria.

         Em Loures, quando abrandei um pouco para atravessar a Via Verde, olhei para o relógio no tablier do carro e reparei que pouco passava das nove e meia. Contudo, era ainda possível vislumbrar o azul do céu, um pouco escurecido. O dia tinha estado quente e a noite também prometia altas temperaturas. O meu ar condicionado era a janela do lado do pendura meio aberta, já que a minha não dava jeito por causa da velocidade e do barulho do vento mas, na verdade, isso não ajudava muito ao arrefecimento no interior do carro. Sentia as costas coladas à camisa e ao banco. Nunca gostei muito do tempo quente, pelo menos na cidade. No Verão, sempre que conseguia e me era possível, fugia para São Martinho do Porto, em vez de seguir para Sul. O Algarve tinha sempre calor e gente a mais para o meu gosto.

         Com alguma dificuldade, no meio de tanta papelada e coisas que já deviam estar no lixo há muito tempo, consegui arrancar uma cassete que estava lá bem no fundo do porta-luvas. Meti a fita no leitor e comecei a ouvir os acordes iniciais de “Waiting For The Sun” dos The Doors.

Hello, I Love You” – grande malha.

Acendi o primeiro cigarro daquela viagem que devia durar cerca de uma hora até ao destino. Por entre duas profundas bafuradas senti o esboço de um sorriso no rosto quando instantaneamente me lembrei de um trabalho que tinha feito há pouco tempo a propósito dos trinta anos de edição daquele disco, em que tinha tentado desmontar todas as faixas nele contidas através de diálogos imaginados com Jim Morrisson, matéria que vendi a uma revista especializada e destinada a um público teenager esfomeado em perpetuar alguns mitos mesmo que deles em vida pouco ou nada tenham conhecido, ouvido e visto.

         Morrison foi sempre uma personagem que me intrigou. Juntando isso ao facto de gostar da música dos The Doors, aquele foi um trabalho que me deu enorme prazer.

         A vida, mas sobretudo a morte, daquele tipo que consumia drogas e álcool desmedidamente, que queria ser poeta em vez de cantor, que abominava a fama mas tinha atitudes que só a aumentavam quase sem se dar conta, tinham-me dado pano para mangas durante algumas semanas.
                                                                                                                                     (continua)

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