terça-feira, 3 de maio de 2016

fx. 2 - love street (segunda parte)


         Tenho razão?

            Claro que tenho.

            Eu sei o que quereis.

            Quereis êxtase

            Desejo & sonhos.

            Coisas não exactamente o que parecem.

            Eu conduzo-vos por este caminho, ele puxa para aquele caminho.



E deparamos com uma jovem morena que nos sorri e acena e depois se encaminha na nossa direcção. – Eu sou aquela que procuram, a que em toda a vida desejaram e nunca tiveram. Eis-me aqui. – Foi assim que ela se foi chegando, sem que disséssemos nada, sem que a mandássemos vir. E foi esse atrevimento nas palavras que nos dirigiu que nos deixou até certo ponto atónitos e ao mesmo tempo agradados. Naquele instante nem Jim nem eu sentimos qualquer vontade de questionar a sua ousadia. A mulher era bela e a tesão que sentíamos superava todo e qualquer anseio para questionarmos tamanho atrevimento que de certa forma pudéssemos eventualmente sentir. Por isso deixámos que continuasse. – Eu sou Lunna, aquela que melhor espelha o que nunca tiveram oportunidade de imaginar por nunca ter sequer passado pela vossa cabeça tornarem-se complemento do que quer que fosse ou de alguém. Mas eu aqui andava e por vós já buscava quando o mundo era ainda uma pedra intacta, quando as coisas ainda procuravam os nomes. Eu já os procurava desde o começo dos mares, dos tempos, até mesmo quando deus ainda procurava companhia. Eu já os procurava desde a idade do gelo. Sou parte das vossas almas. Eis-me aqui finalmente junto a vós para os acalentar. – Jim não mexeu sequer uma pestana após o que tínhamos acabado de escutar e eu resisti talvez catorze segundos até emborcar nova carga de gin apenas para não me faltar o ar de um balão que já parecia estar completamente enrugado de tão vazio que se apresentava. Somente com a sua imagem e o pouco que nos tinha dito Lunna conseguiu transformar-nos nos seres mais importantes e ao mesmo tempo mais impotentes dos presentes ali naquela… coisa, casa, mansão. Na rua do amor. Armadilha, teremos pensado. Continuámos à espera para ver que mais se seguia. E ouvir talvez o que Lunna tivesse para acrescentar ao que já tinha sido dito. E ela continuou como se ali não estivéssemos, ou como se não fossemos nós aqueles a quem se dirigia. Talvez Lunna estivesse por ali à espera dos primeiros que lhe aparecessem naquela mesma noite para lhes transmitir aquilo que há muito ela parecia julgar que eles estariam à espera de escutar. Na verdade, embora a quantidade de interrogações para as quais não existiam respostas no momento, vi Jim intrigado e, isso, apesar de tudo o resto, mesmo o mais absurdo, não era nada normal, o que me deixou a mim ainda mais confuso.



         Os actores estão reunidos

            depressa ficam

            encantados

            Eu, por mim, estou em êxtase

            Cativado

            Conseguirei convencer-te a sorri?



Inesperadamente, Lunna respondeu ao chamamento e ao anseio de Jim esboçando um sorriso que revelou todo o encanto máximo que alguma vez um humano pode imaginar noutro. E de seguida sentou-se a nosso lado. Durante largos minutos ficámos em silêncio apenas a observar o que se passava à nossa volta. Sem nunca trocarmos palavras fomos desfrutando com alguma passividade da excitação existente entre a maioria dos que ali estavam e que trocavam carícias entre si, nalguns casos as relações pareciam intermináveis, gestos e toques, carícias que pareciam não ter fim. Com os membros erectos os homens que ali estavam pareciam dispostos a tornar os parceiros mais chegados nos seres mais preenchidos do universo, talvez da noite, apenas daquela noite. A saliva corria a rodos, talvez até mais do que o gin e todos os restantes cocktails de cores várias que aqui e ali íamos vendo por entre mãos de homens e mulheres. Entre grupos diversos existia um rodopiar constante e até frenético que aos poucos nos parecia embriagar só de olhar. Homens, mulheres, homens, eles mais do que elas embrulhando-se uns nos outros e nas outras como se das pessoas mais apaixonadas ao cimo da terra se tratassem. Ou talvez fosse isso mesmo e nós ainda não o tivéssemos descoberto. A fazer fé nas palavras de Baby e Lunna… talvez…



         Eu não sabia o que

            era ser verdadeiro

            pensava que tudo isto era uma brincadeira,

            nunca deixei o horror,

            a doçura & a dignidade

            penetrarem-me o cérebro



e ali estávamos agora com uma imensidão enorme de expectativas que entretanto se tinham apoderado de nós. Naquela altura só desejávamos ser conduzidos por alguém. E quem melhor que Lunna para nos levar?



         E assim

            passaram dois anos



            Agora o mundo dela era laranja vivo

            E o fogo brilhava

            A amiga dela teve um bebé

            E vivia connosco

            Sim, entrámos pela janela

            Sim, batemos à porta

            O telefone dela não respondeu,

            Sim, mas ela ainda está em casa



            O pai dela não prestou muita atenção

            & a irmã é uma estrela

            & a mãe fuma diamantes

            & ela dorme cá fora no carro



            Sim, mas ela recorda Chicago

            Os músicos & as guitarras

            & a relva junto ao lago

            & as pessoas que riam

            & faziam o seu pobre coração sofrer



            Agora vivemos no vale

            Trabalhamos na quinta

            Subimos às montanhas

            & tudo vai bem



            & eu ainda aqui estou

            & tu ainda aí estás

            & nós ainda por aí andamos



aquele tempo que nos mantivemos em silêncio profundo como mudos e surdos ao mesmo tempo pareceu infindável. Nas nossas cabeças passaram imagens de películas quase de todos os tempos deixando em nós a ideia de tempo que passou sem nunca ter passado na verdade. Terão sido trinta, quarenta minutos de emoções que não conseguimos conter. E quando como que despertámos olhámos à nossa volta e estávamos sós. Jim, eu… e mais ninguém. Mais nada, nem ninguém, nem coisa nenhuma. Sem sinais de mansão, de alguma vez por ali ter existido aquela rua que nos pareceu antes ser como a vimos, ou talvez não. Naquele instante, Jim deu dois passos à frente para tentar perceber o que se tinha passado e eu acompanhei-o. E ficámos, assim, a olhar para… nada. Exactamente o que víamos ali onde nos encontrávamos: nada. Uma imagem vazia. Sem gente, nem cor, nem casas. Ou movimento. Uma imagem quase irreal. O Nada afinal existe. E nós tínhamos conseguido lá chegar. Quis tentar perceber o que era aquilo para obter algum tipo de descrição e mais tarde poder falar do assunto mas revelava-se difícil. Como descrever algo que não existe? Como utilizar palavras ou pensamentos para descrever o Nada sendo que ele é isso mesmo? Sabem aquele vazio que existe em cada um de nós quando estamos de profunda ressaca depois de uma noite alegremente encharcada com o vinho mais rasca que se possa imaginar? Aquela abstracção desejada, às vezes forçada para amenizar a dor até que a ressaca se vá embora? Pois, sem qualquer evidência de esforço era isso que se passava naquele momento. O nosso olhar perdia-se e cruzava-se com coisa nenhuma por algo que não estava ao nosso alcance. Sem dor, se é que me faço entender, sem atalhos nem ressentimentos. Como se tivéssemos acabado de despertar para o mundo que embora soubéssemos já existir mas tal como um bebé prematuro que ainda nem sequer consegue abrir os olhos por não ter chegado a esse estádio de desenvolvimento. O único entendimento perceptível era o de que estávamos ali e vivos. Tudo o resto se é que alguma vez fez parte das nossas vidas não nos apoquentava. Uma estranha sensação de recomeço apodera-se rapidamente de mim e quero acreditar que de Jim também. Alguma coisa ou alguém nos tinha concedido a possibilidade de podermos reescrever a história, a nossa história a partir deste momento em que nos achamos no perfeito vazio preenchidos por coisa alguma em torno de nada. O que quer que tivesse acontecido pouco importava, o que nos tivesse feito chegar àquele estado pouco interessava. Só tínhamos presente a ideia de que a partir dali as coisas seriam como desejássemos que fossem, pois nada ainda estava feito. Tínhamos por isso tudo por fazer e para fazer. As nossas vidas podiam ser reescritas. Era essa a nossa oportunidade, uma possibilidade que nos foi concedida sabe-se lá por quem(?), nem era isso que nos importava sequer. Partimos então deste momento em que Nada existe, nada acontece, para algo que irá (re)criar memória entre nós. Apenas comungamos a vontade de o fazer devagar, sem solavancos, nem bocejos.



         Por vezes quando tudo é levado ao extremo

            e tudo o que é feio se dilui

            num sono profundo

            Há um despertar

            e tudo o que fica é verdadeiro.

            À medida que o corpo se destrói

            o espírito torna-se mais forte.

                                                                                                              (continua)

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