quarta-feira, 4 de maio de 2016

António


         A porta estava mesmo fechada, mas do lado de fora onde me encontrava já dava para perceber que estava gente lá dentro. Pelo barulho que se ouvia eu até diria que o bar estava à pinha. Resolvi tocar à campainha e esperar. Passados alguns instantes vi a porta ser aberta por um tipo forte, de certeza com mais de cem quilos e quase dois metros de altura. Foda-se(!), que susto.

         - É aqui o bar do António? – perguntei ainda hesitante e surpreendido com aquele gigante ali especado à minha frente que tinha quase o dobro do meu tamanho.

         - O António sou eu – respondeu com um vozeirão proporcional ao corpo.

         - O Daniel disse-me para vir aqui beber um copo.

         - Força, pá, entra. Eu mantenho a porta fechada porque aqui num sítio destes um gajo nunca sabe. É preciso ter cuidado por causa da malandragem que cada vez mais anda por aí armada aos cucos. E aqui só entra quem eu quero que entre.

         Quase soltei uma gargalhada enquanto passei para a parte de dentro do bar. Como é que um tipo com aquele porte poderia ter medo de alguém? A entrada era estreita e o interior era minúsculo também. O espaço não era mais que um balcão com cinco ou seis bancos. E não dava para mais. Curiosamente o interior para lá do balcão era bem mais largo que a parte destinada à clientela. Olhei de novo para o António e esbocei um sorriso quando pensei ter percebido o motivo. Atrás do balcão dava para ver ainda uma porta que talvez desse para uma cozinha. A luz não era muita. O bar de tão pequeno estava praticamente iluminado por uma televisão que estava pendurada num canto junto ao tecto. Era dela que saía o ruído que se ouvia da rua. Sentado numa das extremidades do balcão estava um tipo imóvel de olhos fixos naquilo que me parecia a transmissão de corridas de cavalos. Olhando melhor, reparei que batia compassadamente com a ponta dos dedos da mão direita aumentando o ritmo à medida que o narrador da corrida ia ficando mais eufórico. Era um canal em língua inglesa captado obviamente por satélite.

         Soltei um suspiro desanimado quando dei conta que das suecas nem sinal no mesmo momento em que António se reaproximou de mim.

         - Então o Daniel mandou-te sozinho à descoberta disto cá em cima? Saiu-me cá um artista aquele. Passa a vida a dizer que ama a mulher e anda por aí sempre caído pelas camones a ver se alguma cai na conversa dele. Grande sacana aquele Daniel. Mas é um bom rapaz, tem alma, e se te mandou até cá é porque também deves ser bom, ele nisso nunca me falhou, só fala disto a gente de confiança.

         Ri-me com a conversa daquele homem com corpo de brutamontes e algo rude a falar mas que não chegava a ser ofensivo. Deveria estar acima dos cinquenta anos apesar dos cabelos mais brancos que pretos e a farta barba também já bastante manchada.

         - Pois, perguntei-lhe por um sítio calmo para beber um copo e ele falou-me disto.

         - Este bar, my friend, é a minha casa – continuou António. – Ali atrás fica a cozinha e o quarto. Esta parte aqui é só para receber os amigos e olha que não são poucos. Não tenho isto para ganhar dinheiro, esse já o ganhei durante trinta e cinco anos a trabalhar no mar, não aqui, aqui é fácil, eu estive na África do Sul a dar no duro. Fui para lá com dezoito e só voltei quando a idade deixou de me permitir ter a mesma força para trabalhar. Nunca casei, nunca gastei dinheiro com gajas, juntei algum e, quando voltei, comprei esta casita que estava para aqui abandonada, recuperei-a e, pronto, cá estou. Tinha era de continuar a viver perto do mar, isso é que tinha de ser.

         António falava comigo como se estivesse ligado à alguma corrente. Aquela história devia ser contada exactamente da mesma maneira a todos os que ali entravam pela primeira vez. E eu ainda estava de pé e com as chaves do carro na mão. Para demonstrar interesse, perguntei-lhe se tinha nascido ali em São Martinho do Porto.

         - Não, sou da Beira Baixa, da Covilhã.

         – Não me diga, também sou desses lados.

- De onde? – berrou António de sorriso extraordinariamente aberto que dava perfeitamente para enfiar uma bola de ténis por aquela bocarra.

         - Alpedrinha.

         - Olha-me só isto, conheço bastante bem. Já não vou para aqueles lados há uns anos valentes, mas era um sítio fantástico. Lembro-me do tempo em que ainda usava calções e já ia até lá só para saltar para cima duma matulona bem mais velha. Se calhar já deve ter morrido mas era assim uma coisa do outro mundo, de gritos e chorar por mais, nunca estava satisfeita. Nunca mais me esqueço das muitas vezes que passei naquela grande fonte... ai, como é que se chama?

         - O chafariz real?...

         - Exactly. Lembro-me tão bem que a gaja naquelas horas do entardecer em que já pouco se via fazia-me cá umas mamadas que eu até subia às estrelas.

         Os olhos de António brilharam enquanto me contava aquilo.

         - Em que cidade da África do Sul esteve? – perguntei, agora mais à vontade e ao mesmo tempo que decidi sentar-me a dois bancos de distância daquele estranho que ainda olhava para as corridas de cavalos que a televisão ia transmitindo como se ali não estivesse ninguém à sua volta. Provavelmente nem sequer tinha dado pela minha entrada. Pousei as chaves do carro em cima do balcão e antes de começar a ouvir nova resposta de António que poderia ser demorada apontei para uma garrafa de Jameson que vi numa das prateleiras do interior daquele bar.

         Eficientemente, António largou de imediato um copo à minha frente e depositou a garrafa ao lado da minha mão.

         - Serve-te à vontade. Queres gelo?

         - Não, não gosto de estragar um bom uísque.

         - Assim é que se fala. És da minha terra, rapaz, ‘tá tudo dito.

         Aquele homem tinha o dom de deixar as pessoas à vontade bem depressa com a sua maneira de ser, a sua conversa, um pequeno gesto como uma desligada atitude de largar um copo e deixar a garrafa à nossa mercê.

         - Então, diga-me, na África do Sul – atirei de novo – esteve em que cidade?

         - Trinta e cinco anos em Cape Town. Pirei-me para lá em sessenta e um para fugir ao Ultramar. Queriam mandar-me para a Guiné. Eu tinha dezoito anos e já trabalhava, pá, virei-me para os gajos, disse-lhes para esperarem um bocado que eu ia só mijar e nunca mais me meteram a vista em cima, rabiei-os a todos. Peguei no dinheiro que tinha amealhado e consegui esquivar-me para Espanha. Em Madrid tive que investir algum mas consegui arranjar maneira de entrar num avião e zarpar para a África do Sul.

         - Mas, África do Sul, foi uma escolha sua?

         - Nem por isso. Na verdade, eu não conhecia nada de nada. Naquela altura só queria ir para bem longe… e não me arrependi. Cape Town é uma das cidades mais belas do mundo, tu deves saber, a table mountain, o mar, aquelas praias sem fim, o clima… Aquilo é um paraíso na terra.

         - Mas acabou por voltar para Portugal.

         - Sabes, trinta e cinco anos é muito tempo, quase uma vida e a minha foi uma vida de muito trabalho duro. Tu, quantos anos tens?

         - Trinta e seis.

         - Vês, é o que te digo, eu trabalhei por lá, praticamente, durante todo o tempo da tua vida. Cheguei lá com a roupa que tinha no corpo, fui com uma mão atrás e outra à frente, o pouco dinheiro que tinha investi na viagem.

         - E o que fez por lá durante tantos anos?

         - Dediquei-me ao mar que era onde havia mais trabalho. Até então nunca o tinha visto tão de perto e no fim acabei por viver mais de trinta anos a ele ligado. Foi duro, muito duro, cheguei a borrar-me todo e não foram poucas as vezes. Vi o mar levar muitos homens, grandes amigos, alguns portugueses, muitos deles da Madeira, casados e com filhos. Houve momentos, naqueles dias em que o mar parece que nos vai engolir, que só pensava em saltar borda fora para acabar de vez com o medo e o sofrimento, mas faltou-me sempre a coragem para uma coisa dessas. E fui aguentando, sobrevivendo, mas para o fim as forças já me começavam a faltar e, ao mesmo tempo, quando comecei a ouvir aqui e ali que andavam a limpar o sebo a alguns portugueses decidi vir-me embora. A minha vida agora é esta, não preciso de mais nada. Durmo, acordo, bebo uns copos, recebo os amigos e fico à espera do meu dia que virá, aqui perto deste mar calmo. Não quero mais do que isto e quando preciso de matar saudades agarro na minha cana e no barquito que tenho lá em baixo na praia e vou dar uma voltita.

         - Posso beber mais um? – perguntei apontando para a garrafa, praticamente, ainda cheia.

         - Bebe o que quiseres, rebenta com ela, não pagas mais por isso. Fica aí à vontade que eu tenho que ir lá para dentro preparar umas coisas que tenho para fazer amanhã bem cedo - e desapareceu pela porta que se situava por detrás do balcão.

         Abri o maço de cigarros que trazia no bolso da camisa, acendi um, enchi o copo com uísque e fiquei a pensar por momentos naquele homem e nas muitas histórias que ele teria para contar. Para mim, o António era uma daquelas raras pessoas que durante o tempo de vida tinha conseguido o que muitos desejam e não conseguem: conquistar a fortuna. Depois de uma vida inteira dedicada ao mar a dar no duro, bastava-lhe agora para os últimos anos de vida aquela casita, um pequeno barco para matar saudades e os amigos para o escutar. Senti satisfação por ele.

                                                                                                        (continua)

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