segunda-feira, 2 de maio de 2016

Chegada a São Martinho do Porto e a primeira visão das suecas (segunda parte)


         Finalmente, a baía. Segui, como habitualmente, por Salir. Nunca deixei passar muito tempo sem me deslocar até São Martinho do Porto que descobri vai para quinze anos através de um amigo dos tempos da tropa que vivia em Alfeizerão e que uma vez me convidou para passar um fim-de-semana e isso foi suficiente. A primeira vez que olhei para aquele extenso areal e aquele mar em forma de concha fiquei imediatamente apaixonado. Uma praia perfeita ao longo de uma baía deslumbrante, um mar azul de suave quietude e uma brisa que tanto me agradou. A imensidão daquela praia de areia fina e clara, as características da vila e a serra verdejante que a envolve em tudo contribuíram para que nunca mais deixasse de ali voltar. Com Anabela cheguei a fazer planos para nos mudarmos para lá. Vendia-se o apartamento de Lisboa e ainda se ganhava algum dinheiro. Para mim a mudança não causaria qualquer transtorno, pois não tenho horários a cumprir e Lisboa só ficava a uma hora de distância. Quanto a Anabela, sempre que fosse necessário ficaria em casa dos pais com quem trabalhava numa loja de roupa na Rua do Carmo. Também por isso tinha horários bastante satisfatórios e dias de gazeta sempre que lhe convinha. A loja é um negócio de família com alguns anos e os pais só lhe pediam para tratar da papelada referente à coisa, contas e afins. Tudo parecia, para mim, bem encaminhado mas esses planos não deram em nada. Ainda tentei por duas ou três vezes abordar o assunto da mudança para ali de forma mais séria mas nunca a senti muito entusiasmada com a ideia. E acabei por desistir. Achei que não deveria ser eu a forçar o que quer que fosse para estarmos bem um com o outro.

         Em velocidade reduzida, enquanto observava na paisagem nocturna as luzes das traineiras atracadas na baía, percorri a marginal até à zona do cais com a esperança de encontrar um lugar para estacionar, o que não se revelava fácil. Nesta altura do ano, aqueles que para ali se deslocam de férias roubam um pouco o sossego que habitualmente a vila oferece durante todo o resto do ano. Ainda assim, num golpe de sorte acabei por encontrar um bom lugar junto à praia e perto de tudo. São onze horas e o clima parece acolhedor. Já passei noites em São Martinho do Porto em que é praticamente impossível aguentar a brisa sem uma camisola bem quente. Mas também já passei por outras bastante agradáveis em que só se está bem numa esplanada acompanhado por garrafas geladas de vinho branco. Esta parecia-me uma noite dessas. Por isso ainda era possível ver bastante gente no paredão junto à praia em plena avenida marginal e ouvir gente de todas as idades com gargalhadas sonoras e conversas em tons maiores. Vou passando sem ligar nem dando importância ao barulho mas com a certeza que aqueles instantes servem para desanuviar um pouco de todo o stress acumulado durante o resto do ano. Nas mesas e cadeiras das esplanadas o mesmo ambiente, frenético, agitado.

         Encaminhei-me na direcção de uma albergaria que se situava mesmo em pleno largo central junto à concorrida rua dos cafés. O sítio era agradável mas rapidamente vejo as minhas esperanças desvanecerem quando me anunciaram que não havia qualquer quarto disponível.

         - Não me parece que a estas horas consiga arranjar onde ficar – disse-me uma jovem que aparentava pouco mais de vinte anos e que surgiu por detrás de um pequeno balcão depois de eu ter sinalizado a minha presença dando um toque com a mão numa velha sineta.

         - Isso não são boas notícias, pois não? – perguntei ao mesmo tempo que deixei escapar um sorriso.

         A rapariga também me sorriu por simpatia.

          – Tanto quanto sei está tudo cheio por aqui. Parece que este ano toda a gente resolveu vir neste mês de Julho. Já há muitos anos que não se via uma coisa assim.

         Enquanto me falava reparei naqueles olhos verdes magníficos e no seu rosto bronzeado pelo sol. Senti-me dominado pelo entusiasmo e pela satisfação do que observava:

         - E na sua casa não tem por acaso um canto com um sofá de sobra? Eu prometo não incomodar.

         Cheguei a temer um pouco pelo meu atrevimento mas a risada espontânea que ela soltou suavizou-me o espírito.

         - Não, não tenho, vivo numa casa pequena com a minha mãe, um cão, um gato, dois pássaros e o meu pai que está a trabalhar fora está para chegar, por isso não temos camas disponíveis.

         - Paciência – atirei embrulhando pelo meio um suspiro - fica para a próxima. Então tenho que ir à procura de um sítio para ficar noutra freguesia.

         Quando já estava quase a transpor a porta que dá para a saída ocorreu-me uma ideia estapafúrdia. Na verdade o que eu queria era voltar a ver aqueles olhos mais de perto.

         - Posso desafiá-la?

         Ela, surpreendida, mas ainda a sorrir, ergueu o sobrolho e ficou na expectativa do que eu pudesse dizer.

         - Como é que se chama?

         - Manuela.

         - Então, se por acaso eu conseguir arranjar um sítio para ficar em São Martinho do Porto, aceita beber um copo comigo amanhã?

         - Aceito – respondeu, de imediato, sempre com o sorriso colado no rosto - mas não creio que isso seja possível.

         - Veremos. A que horas posso vir buscá-la? – atirei eu com ar seguro querendo dar a ideia de que o desafio estava no papo.

         - Saio todos os dias às dez da noite.

         - Aqui estarei a essa hora. Até amanhã.

         A seguir virei-me e ainda a rir saí da albergaria. Já no exterior, olhei em frente na direcção da residencial que se situava precisamente do outro lado da rua e lembrei-me que ali em tempos trabalhava um rapaz com quem já tinha vivido algumas coboiadas nocturnas em São Martinho do Porto. Dirigi-me para lá. Entrei e dei logo de caras com um sujeito simpático de caracóis, um pouco mais baixo que eu e com uma cara que me era familiar. Nem mais. Aquele corpo logo se dirigiu ao meu para um grande abraço. Um abraço apertado de quem não se via há muito tempo.

         - Como estás, Daniel? – perguntei automaticamente enquanto lhe dei duas palmadas nas costas.

         - Eu estou aqui como sempre. E tu, pá? Bem te vejo por aí de passagem de vez em quando, mas nunca mais te lembraste de me vir dar um abraço. Que fazes por cá hoje?

         - Olha, não tenho muita vontade de falar sobre o assunto, mas vivi uns anos com uma gaja, a Anabela, acho que não chegaste a conhecê-la, mas hoje a coisa deu para o torto e saí porta fora. E aqui estou agora à procura de um quarto para ficar por um ou dois dias até meter as ideias no lugar.

            Daniel esboçou um ligeiro sorriso e sem fazer qualquer comentário olhou e remexeu uns quantos cartões que estavam em cima do balcão. Passou os dedos por quatro, cinco, seis, depois perdi a conta, até que o ouvi dizer:

         - ‘Tás com sorte, pá. Tínhamos uma reserva que foi desmarcada ainda agora antes de chegares. Isto por aqui tem andado cheio que nem um ovo. Mas é um quarto de casal, queres?

         - Claro que sim.

         - Onde é que estão as tuas coisas?

         - Quais coisas?

         - Não trouxeste nada contigo, nem roupa? - perguntou Daniel já a rir que nem um perdido. – Eh pá, não mudaste nada, continuas maluco. Olha que estamos a ficar velhos.

         - E achas que eu não sei? Dá-me lá a chave do quarto. Ainda quero ir beber um copo a qualquer lado, que estou a morrer de sede.

         Subi sozinho pelas escadas até ao primeiro andar da residencial e depois de atravessar o corredor quase até ao fim dei com o 103. Preparava-me para entrar quando ouvi a porta de outro quarto mesmo nas minhas costas a abrir e vozes que diziam qualquer coisa que não consegui decifrar. Virei-me para ver de quem seriam e deparei com duas nórdicas, quarentonas mas com aquele ar sempre jovem que só as escandinavas parecem conseguir manter. Cabelos claros, olhos azuis, peles bronzeadas pelo sol. Estavam sorridentes e bem dispostas. Disseram qualquer coisa que me soou a boa-noite mas não consegui entender bem e desataram a rir enquanto se dirigiram para o elevador. Dobraram a esquina do corredor e ainda as consegui ouvir a dialogar mesmo já sem poder vê-las. A cada palavra que uma dizia a outra ria-se.

         Entrei no quarto e rapidamente despi a camisa, tirei do pulso o relógio e atirei com ambas as coisas para cima da cama, encaminhei-me para a casa-de-banho, meti a cabeça debaixo da torneira do lavatório et voilà, como novo. Pronto para esquecer Anabela, os últimos dois anos da minha vida e partir para outras aventuras. Na verdade, o que não me apetecia naquele momento era gastar tempo a pensar e a reflectir sobre a minha saída de Lisboa de forma tão repentina e inesperada. O que ansiava no imediato era enfrascar-me de uísque e a seguir dormir bastante.

         Trinta minutos depois das onze horas desci novamente à recepção e não vi ninguém. Imaginei que Daniel devia ter ido, talvez, à casa-de-banho. Sim, que um homem embora de serviço numa recepção também não é de ferro.

         Resolvi não esperar e larguei a chave do quarto em cima do balcão. Preparava-me para atravessar a porta de saída quando o ouvi:

         - Viste as suecas, não viste? Viste, quase de certeza. Elas saíram quando tu subiste. Estão mesmo no quarto à tua frente... – dizia-me ele vindo ao meu encontro de sorriso nos lábios como sempre o conheci.

         - Ah, são suecas?

         - Boazonas… estão cá há duas semanas e fartam-se de me desafiar para sair com elas.

         - E ainda não lhes fizeste a vontade? Andas a perder qualidades?

         - ‘Tás louco, não posso. Sou casado, pá. Ainda arranjava para aí um trinta e um. Às vezes é difícil de aguentar, sobretudo se elas não são nada de deitar fora, mas não posso arriscar. E neste caso são duas, pá.

         - Mas essa parte resolve-se – atirei-lhe eu – podes mandar uma para o meu quarto – desatei a rir enquanto Daniel ficou a olhar para mim a pensar sabe-se lá em quê – bem, deixemo-nos de tretas, queres ir beber um copo? Preciso de desanuviar um bocado.

         - Não posso, com muita pena minha, estou de serviço até às oito da manhã e não está aqui mais ninguém.

         - Recomendas algum sítio em particular?

         - Queres uma coisa barulhenta?

         - Não, nada de grandes confusões para começar a noite.

         - Olha, há por aqui um sítio onde eu gosto muito de ir quando não quero estar em casa mas também não quero ver muita gente, um pequeno bar bastante calmo ali em cima como quem vai para o Facho. Nunca tem muita gente, é uma coisa muito privada. Sobes como se fosses para o farol, segues por aí e logo vês, é um sítio recatado e como é preciso carro para lá chegar a miudagem nem bate lá com os costados, preferem ficar aqui pela vila. Tem uma luz por cima da porta, encontras aquilo com facilidade. O dono é meu amigo, chama-se António, diz-lhe que vais da minha parte e ele trata-te bem, verás.

         - Se é teu amigo já é outra conversa. Vou lá então ver isso.

         - Mas vê se não te perdes e, olha, se encontrares por lá as suecas atira-te de cabeça – rematou quando eu já tinha virado costas.

         Fiz o trajecto para o carro, que se encontrava estacionado junto ao jardim do turismo, pela rua dos cafés, oficialmente Vasco da Gama, mas acho que poucos a reconhecerão pelo seu verdadeiro nome. De caminho, precisava de comprar cigarros e por ali tinha a certeza que encontraria uma tabacaria. Enquanto cruzava e esbarrava com grupos de jovens, pais e avós, à conversa e em passos descompassados, seguia absorto a pensar no quanto São Martinho do Porto é uma vila curiosa, claramente dividida em duas, a parte de baixo, onde me encontrava, perto da praia, com a badalação turística, e a parte alta, que contém a maior parte das casas dos locais e a velha igreja, que em tempos visitei.

         - Tem português suave sem filtro? – perguntei a uma menina que estava num quiosque encurralado entre duas esplanadas repletas de gente. Ela acenou afirmativamente. – Quero dois maços – gritei ao mesmo tempo que três jagunços de palmo e meio quase me derrubavam sem se aperceberem enquanto gritavam uns com os outros e discutiam qual o tipo de gomas que deviam comprar.

         Entrei no carro e comecei a dirigir, tal como Daniel tinha recomendado, na direcção do farol. Liguei o auto-rádio e das colunas continuaram a sair sons de “Waiting For The Sun”. Aumentei o volume.

         Five to one, baby/One in five/No one here gets out alive, now/You get yours, baby, I'll get mine/Gonna make it, baby, If we try.

         E fiz coro com Jim na repetição final: Get together one more time/Get together one more time.

         Ao mesmo tempo que delirava com a música fui avançando pela estrada do cais em direcção à barra. Ali mesmo ao lado reparei em várias traineiras aportadas, quase todas da apanha submarina de algas.

O farol da entrada da barra fica num monte que ladeia o cais, pode passar-se por lá a pé mesmo por debaixo desse monte através do túnel de santo António para se chegar a uma pequena praia de pedras com uma das mais belas vistas de fora da baía. Virei perto desse local à direita e subi em direcção ao farol através de uma estrada entre dois montes. É este intervalo entre os montes, chamado vale de Guizos, que faz com que o vento norte, a terrível nortada, atravesse a baía em rajadas cruzadas que são o terror dos velejadores que abundam nesta terra. Continuando a subir cheguei ao cruzeiro de Santo António de onde se tem durante o dia uma das mais belas imagens da baía e da vila. Irresistível também à noite, diga-se. Por isso parei o carro por instantes para olhar lá para baixo. A cassete voltou ao início e “Hello, I Love You” começou, de novo, a soar nas colunas quase em saturação. Rodei ligeiramente o botão do volume para a esquerda e baixei um pouco o som, meti a primeira e arranquei na esperança de encontrar rapidamente o tal bar de que Daniel me tinha falado. Estava no Facho, já não era a primeira vez, é bom vir aqui durante o dia em jeito de passeio a este que já foi o ponto mais alto da costa portuguesa mas que tem vindo a perder altura devido à erosão. Tem uma óptima vista da entrada da baía e até, em dias claros, das Berlengas. Não muito longe do local onde me encontrava, talvez a trezentos metros, no meio de um pinhal em direcção à praia dos Salgados, uma luz quase sumida que mais parecia uma estrela naquela imensa escuridão. Fui avançando em marcha lenta, o conta-quilómetros não marcava mais de trinta à hora, até que deparo, no meio de todo aquele mato, com uma casinha bastante pequena pintada em tons de um azul céu não muito feliz, daquelas cores que só achamos possível ver em carros de emigrantes portugueses que, uma vez por ano, chegam de fora para matar saudades do País. A porta, pelo que percebi, estaria fechada ou talvez apenas encostada. Ali ao lado apenas dois carros estacionados. Assim, de repente, não senti o ambiente nada acolhedor. Porém, resolvi estacionar, afinal de contas levava boas referências e, certamente, o António havia de me servir qualquer coisa para beber e matar o tempo. Um dos carros que ali se encontrava seria, certamente, o dele e o outro, passou-me pela cabeça, talvez fosse das suecas.

                                                                 (continua)

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