Daniel deixou-me sozinho
por volta das sete da tarde. Entrava, de novo, ao serviço daí a uma hora e
tinha que passar por casa. Durante aquele tempo em que estivemos juntos tentou
vezes sem conta que lhe falasse da noite anterior. Por entre palavras, risos,
cervejas, tremoços e duas bifanas, ainda acabou por me deixar mais curioso
quando abordámos a situação estranha que passei no bar que tinha recomendado e
ele me falou das histórias insólitas e até assustadoras envolvendo fantasmas,
espíritos, feitiçaria e magia negra que António às vezes contava do tempo que
tinha vivido em África. Acrescentou também que, por vezes, um ou outro amigo
com quem tinha trabalhado por lá o vinha visitar e nesse caso poderia muito bem
ser um deles.
Depois de Daniel se
afastar permaneci mais algum tempo por ali sozinho com os meus pensamentos na
esplanada mais central de São Martinho do Porto. Até que reparei em Manuela,
que se encontrava à porta da albergaria e lembrei-me naquele instante que lhe
tinha ganho uma aposta e ela me devia um café. Sorri-lhe de longe quando dei
conta que me tinha visto e até fiquei surpreendido quando a vi rir com as duas
mãos no ar e os dedos completamente abertos como que a avisar que só estaria
disponível às dez horas. Acenei-lhe afirmativamente com o polegar.
Para ajudar a passar
melhor aquelas horas que ainda faltavam até ao cair da noite, embora estivesse
sozinho, procurei um sítio agradável para jantar, que acabei por encontrar
junto ao cais, onde por sorte ainda tive a oportunidade de ver um dos mais
extraordinários ocasos que até então tinha observado.
À hora marcada parti, tal
como planeado, ao encontro de Manuela.
- Então onde vamos beber o
nosso café? – perguntei.
- Vamos a um local
simpático que tem boa música. Pode ser que se consiga arranjar mesa.
O local simpático era um
famoso pub que se situava na estrada marginal junto à praia e que não
era um sítio desconhecido para mim. Anos antes, por aquelas bandas, era o único
local onde havia música ao vivo. Era ali que eu e alguns amigos nos
encontrávamos e começávamos a beber as primeiras cervejas da noite. Pouco
passava das dez da noite e o movimento no seu interior já era intenso. Com
alguma sorte, lá conseguimos arranjar dois lugares numa mesa que tivemos que
partilhar com outros dois casais que não conhecíamos. Se exceptuássemos a
altura da música que nos obrigava a falar num tom mais elevado que o normal
estava-se bem por ali. Ficámos sentados lado a lado, os nossos corpos
roçavam-se com naturalidade e não nos sentíamos constrangidos. Sempre que
olhava para a cara de Manuela observava-lhe um permanente sorriso, um ar que transbordava simpatia,
alegria e dava um brilho suplementar aos deslumbrantes olhos esverdeados.
- Já conhecias? –
perguntou-me.
- Ui, se estas paredes falassem poderiam contar-te muitas histórias
terríveis sobre mim.
- Costumas vir cá muitas
vezes?
- Sempre que posso. Que
idade tens? – perguntei.
- Vinte e um. E em que
trabalhas? – retorquiu ela.
- Sou jornalista.
- Que fixe (!) – respondeu no momento em que fomos
interrompidos pelo empregado de mesa.
-
Desejam alguma coisa?
- Eu quero um café e uma
água natural sem gás – pediu Manuela.
- Para mim é um café e uma
água com sabor a Irlanda – acrescentei.
O empregado permaneceu
parado à espera que fosse eu a decifrar o que antes tinha dito. Quase me
desmanchei com o esforço que ele fez antes de me perguntar.
- É um uísque que quer?
- Sim, Jameson.
- Ah, pois claro,
irlandês, peço desculpa, ainda tenho pouco tempo disto.
- Na boa, estava a
brincar, mas por favor, não se esqueça que não quero gelo, isso é que já é a
sério.
- Trago já – disse o
empregado virando costas.
Manuela continuava com o
seu belo sorriso estampado no rosto.
- Qualquer dia apanho um
empregado que não gosta de brincadeiras e sou mal atendido.
- Este não faria isso –
disse Manuela a rir.
- Olha, não vás julgar que
é atrevimento mas não consigo evitar dizer que tens um sorriso lindo – atirei
de rompante. - Aliás, não é só o sorriso, tu és linda e os teus olhos
deixaram-me alucinado desde que os vi ontem pela primeira vez.
Manuela baixou por
segundos o olhar para a mesa não disfarçando um ligeiro tom avermelhado que lhe
pintou a face. Foi a minha vez de soltar o riso.
- Não é preciso corar. Não
terá sido a primeira vez que te disseram isso.
- Podes ter a certeza que
foi a primeira vez que me disseram assim, olhos nos olhos, tão inesperadamente.
- Não fiques envergonhada,
não vale a pena, foi apenas um elogio sincero à tua beleza.
Manuela sorriu e serenou.
Instantes depois chamou-me a atenção para a música que estava a tocar.
- Só se ouve isto este
Verão.
Fiquei quieto por instantes
à procura da concentração que precisava para tentar perceber no meio de tantas
vozes misturadas qual a música a que se referia. Alguém gritava qualquer coisa
como everything’s gonna be all right, rockabye, rockabye, parecia não
passar do mesmo. Se aquela era a música forte do Verão fiquei com a sensação
que estava desactualizado e por isso respondi a Manuela com uma careta que
demostrava a minha ignorância.
- Acho que nunca prestei
atenção a isto.
- A sério? Não acredito. É
o Shawn Mullins. Isto toca nas rádios a todas as horas.
- Pois, mas com o tempo
fui perdendo o hábito de ouvir rádio até porque as músicas que gosto de ouvir
já não tocam há muito tempo.
- Que músicas? – perguntou
ela com curiosidade.
- Coisas dos Supertramp,
Pink Floyd, Doors, Genesis, Rolling Stones, Led Zeppelin, Deep Purple, Van
Halen, Jethro Tull, Bob Dylan, Tom Waits, Yes, The Who e por aí adiante,
poderia ficar aqui uma hora a dizer nomes que talvez não te digam nada.
- Eu gosto de saber,
alguns conheço bem, os Doors, por exemplo, até gosto bastante.
- A sério?… Mas que bem,
já não é normal encontrar alguém da tua idade a gostar de Doors. Tem piada, fiz
recentemente um trabalho sobre eles para uma revista.
- Tinham temas fantásticos
e o Jim Morrison é o máximo. O meu pai é louco por ele. Temos os discos todos
lá em casa. O meu pai emigrou pouco depois de eu ter nascido, porque vive do
mar e isto aqui há muito que não dá nada, mas desde sempre, quando vem de
férias, que me habituei a ouvir Doors quase em permanência. Vais achar uma parvoíce
mas ele repete vezes sem conta a história de ter tido em tempos um companheiro
de embarcação de quem se tornou amigo e que lhe fazia lembrar o Jim Morrison.
- Estás a surpreender-me –
disse-lhe no momento em que ouvimos alguém gritar.
- Nela!
Olhámos em simultâneo para
a outra extremidade do pub e
reparámos em duas raparigas que acenaram e começaram a passar por entre um
amontoado de gente vindo ao nosso encontro. Quando se aproximaram,
cumprimentaram-se as três efusivamente como quem não se via há bastante tempo.
- Estás na mesma – dizia
uma - que vais fazer hoje à noite?
- Ainda não sei.
- Fixe – gritou a mesma
rapariga em absoluto histerismo. – Então, vamos curtir em nome dos bons velhos
tempos. Já viste por aí o resto da malta?
- Alguns – respondeu
Manuela trocando comigo um olhar discreto como se estivesse a pedir desculpa
pelo que se estava a passar.
- O que é que está dar por
aqui? – insistia a eléctrica amiga não dando tempo para qualquer resposta de
Manuela. – O costume, não é? É por isso que a gente curte tanto isto. - E
soltou uma gargalhada que ecoou mais alto que a música que tocava no pub.
Manuela olhou outra vez
para mim e eu percebi que o nosso encontro tinha chegado ao fim.
- A sério que não ficas
chateado? – perguntou-me.
- Claro que não. Pode ser
que nos encontremos por aí ainda esta noite.
Com alguns encontrões e
ligeiros tropeções lá consegui chegar à porta de saída. Olhei para o relógio e
reparei que não tinha estado muito tempo no interior do pub, ainda eram dez e meia. Resolvi andar em direcção ao carro sem
ter bem a certeza do que iria fazer a seguir. Inesperadamente e com alguma
estranheza, quando me sentei ao volante e dei à chave, senti uma enorme vontade
de regressar ao bar do António.
(continua)
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